Durante muitos anos, Delúbio Soares foi muito mais que o tesoureiro oficial do PT. Além de um dos fundadores do partido, o ex-professor de matemática participou ativamente da construção da sólida e imensa estrutura financeira e política que levou Lula à Presidência da República em 2003. Essa dupla militância também foi responsável por sua ruína. Em 2012, ele foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a seis anos de prisão por envolvimento no escândalo do mensalão. Depois disso, a Lava-Jato detectou as digitais dele no petrolão, o que lhe rendeu mais uma condenação por corrupção e lavagem de dinheiro. Delúbio cumpriu pena na penitenciária da Papuda, em Brasília, e, desde que foi solto, submergiu. Parecia abandonado. Não deu as caras na campanha do ano passado nem havia sido incluído na leva de militantes “resgatados” do ostracismo depois da volta do PT ao poder — até agora.
O ex-tesoureiro, assim como outros petistas na mesma situação, está reescrevendo a própria história. Delúbio foi o operador de um esquema de compra de apoio parlamentar no primeiro governo Lula. O PT, de acordo com julgamento no STF, subornava congressistas com dinheiro desviado dos cofres públicos. Como os pagamentos eram mensais, o caso ficou conhecido como mensalão. O tribunal condenou 24 pessoas, incluindo empresários, políticos e dirigentes partidários. Descobre-se agora que tudo — a investigação, o processo e o julgamento — foi uma “mentira”, “um falso escândalo” produzido pela “mídia golpista” com o apoio de “setores reacionários” da sociedade contra “o governo popular e democrático de Lula”. Os detalhes dessa nova versão dos acontecimentos — a “verdadeira” — são revelados no livro Delúbio Soares, o Réu sem Crime, que o ex-tesoureiro acaba de lançar.
Delúbio, aliás, também acusa o STF de “parcialidade” no julgamento do mensalão. Como a conspirata não tirou o PT do poder, na sequência teria vindo a Lava-Jato. A operação desvendou um esquema que desviou 42,8 bilhões de reais dos cofres da Petrobras para, entre outras coisas, financiar campanhas eleitorais do partido. Na narrativa de Delúbio, a ação da Polícia Federal, do Ministério Público e da Justiça foi “concebida no exterior” para “anular a existência política de Lula”, e as provas de corrupção foram obtidas “sob coação ou tortura psicológica” de testemunhas. Resumindo: o ex-tesoureiro e todos os envolvidos no escândalo foram vítimas inocentes de uma maquinação internacional.
É difícil imaginar que alguém em sã consciência acredite nisso, mas Delúbio Soares, hoje com 67 anos, está rodando o país para divulgar seu livro. Ele conta com um parceiro importante nessa missão de reescrever a história: o também ex-tesoureiro João Vaccari Neto. No mês passado, os dois estiveram juntos numa palestra em São Paulo. Falaram sobre o futuro e, claro, sobre o passado. Vaccari, que sucedeu Delúbio como chefe de finanças do PT, foi condenado a mais de vinte anos de prisão por corrupção. Ele deixou a cadeia em 2019, depois de cumprir quatro anos da pena. As investigações da Lava-Jato revelaram que Vaccari recolhia propina de empreiteiras que prestavam serviços à Petrobras. “Eu era o tesoureiro, nada melhor do que chamar o cara que mexe com dinheiro de ladrão”, disse ele à plateia.
Funcionário da CUT, Vaccari, como Delúbio, continua filiado ao PT. Ele não chega ao ponto de afirmar que não houve corrupção na Petrobras, mas exime o partido de qualquer responsabilidade. Fazendo coro com o colega, diz que a Lava-Jato interessava ao “capital internacional” como instrumento para “desmontar” o parque industrial brasileiro. Também fez uma previsão: “Nós ainda vamos ver Sergio Moro sendo preso. O motivo eu não sei, mas ele vai ser preso”. A plateia aplaudiu. Vaccari, ao que parece, recuperou parte do prestígio de antes. Recentemente, ele apadrinhou o novo presidente da Previ, o bilionário fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil.
Ocupar a função de tesoureiro no PT era uma posição complexa até o passado recente. Inquéritos policiais enredaram outros dois ocupantes do cargo nos rolos da legenda. José de Filippi Júnior, que assumiu após a queda de Delúbio, chegou a ser investigado na Lava-Jato. Diferente dos colegas, ele teve uma bem-sucedida carreira política. Atualmente, exerce seu quarto mandato como prefeito de Diadema (SP). Já o ex-deputado Paulo Ferreira, sucessor de Vaccari, decidiu mudar de vida. Assim como Filippi, ele também foi arrastado pela Lava-Jato. “Esse caso foi um divisor de águas na minha vida”, diz. Em 2020, disputou, sem sucesso, uma vaga de vereador em Porto Alegre. Decepcionado, abriu uma loja virtual que vende pets e ingressou como sócio de uma empresa que busca clientes de maquininhas de pagamento instantâneo. “Até agora só tive muito trabalho. Nada de lucro”, conta. Ao contrário dos seus dois colegas mais famosos, Ferreira está mais preocupado com o futuro do que tentando reescrever o passado.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840