À base de socos e pontapés, a youtuber Flavia Caroline de Andrade Eller, de 32 anos, foi espancada e ficou com o rosto desfigurado — com indícios fortíssimos de ter sido vítima de um ataque homofóbico. No Brasil, onde impera hoje um insuportável clima de polarização, a brutalidade do episódio infelizmente ficou em segundo plano e, em vez de provocar um clima geral de consternação e de repúdio a um ato bárbaro, gerou uma discussão que descambou para o embate entre correntes dos extremos do espectro político. Tudo porque Karol Eller, como ela é mais conhecida, está entre as mais notórias apoiadoras do bolsonarismo. No grupo dos militantes de direita, sobraram acusações aos movimentos LGBT por falta de solidariedade em razão de a mulher ser uma ferrenha apoiadora do governo. Do lado da esquerda, houve muitas declarações na linha “bem feito” e “pagou pelo que ela pregou”. Filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro escreveu no Twitter: “Pela direita, o agressor teria pesada prisão. Será que a esquerda apoia tal medida?”. O ex-deputado Jean Wyllys, por sua vez, afirmou que “uma fascista lésbica foi vítima da homofobia que sempre negou”.
O ataque ocorreu no domingo 15. Karol estava com a namorada, a policial civil Suellen dos Santos, em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio, quando foi espancada pelo auxiliar administrativo Alexandre Silva. Três dias depois da agressão, ainda sofria com as sequelas da surra. “Não consigo falar direito porque estou muito machucada e minha bochecha está sangrando”, disse a VEJA na última quarta, 18. As circunstâncias da agressão ainda precisam ser esclarecidas, o que não alivia a gravidade de uma brutalidade desse tamanho. De acordo com a youtuber, o homem, que ela conheceu no mesmo dia, passou a importuná-la, chamando-a de aberração e afirmando que o mundo estava mesmo de cabeça para baixo. “Em seguida, ele começou a assediar minha namorada, dizendo que ela era uma morena muito bonita e perguntando o que ela estava fazendo comigo, antes de começar a me bater”, relata Karol. À polícia, Alexandre contou outra história. Disse que Karol estava manuseando uma pistola, identificou-se como delegada federal e usou três cápsulas de cocaína no banheiro do quiosque. Ele, então, a teria alertado sobre o perigo dos seus atos. Ela não gostou da bronca e partiu para cima dele. A delegada titular da 16ª DP, Adriana Belém, responsável pelo caso, pondera que, de qualquer maneira, haveria outras formas de conter Karol, mesmo que ela tivesse realmente iniciado a briga. “Basta observar o estado em que ficou o rosto da agredida para perceber a força desproporcional que o agressor usou contra ela”, diz a delegada. Alexandre deve ser enquadrado por lesão corporal e, se for confirmada a motivação homofóbica, responderá também por esse crime.
Influente na comunidade brasileira dos Estados Unidos, onde morou por mais de uma década, a youtuber aproximou-se há quatro anos do capitão e virou uma apoiadora convicta e peça-chave da campanha presidencial para suavizar a imagem de homofóbico do candidato. No fim de 2017, ela organizou na Flórida um evento para que a família Bolsonaro se apresentasse aos eleitores brasileiros que moram nos Estados Unidos. Num vídeo no Facebook, Karol aparece “cercada” por Jair, Flávio e Eduardo Bolsonaro. “Estou morrendo de medo dentro deste carro aqui”, diz ela, em tom descontraído. Com a sua gargalhada típica, Bolsonaro responde: “Vai levar umas pancadas aí. Vim aqui pra te curar”. Karol corresponde à brincadeira: “Está repreendido em nome de Jesus”. Todos no veículo riem, e começam a falar sobre política. Companheira de baladas de Jair Renan, o filho Zero Quatro do presidente, Karol hoje trabalha na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), recebe um salário de mais de 10 000 reais e tem acesso livre ao Palácio da Alvorada.
A agressão a ela não foi o primeiro episódio de violência que serviu de combustível para polêmicas ideológicas por aqui nos últimos tempos. Algo semelhante aconteceu na época do atentado a faca contra o presidente e na ocasião do assassinato da vereadora Marielle Franco. Uma das poucas vozes sensatas que criticaram o bate-boca nas redes sociais no caso da youtuber foi a de Toni Reis, militante histórico da causa gay e diretor da Aliança Nacional LGBTI+. “Eu vejo isso como uma banalização da barbárie”, afirma. “Nenhum ser humano, independentemente dos seus pensamentos, pode sofrer qualquer tipo de violência. Isso pode acontecer com qualquer um, seja de esquerda, centro ou direita”, completa. É lamentável mesmo que no Brasil até a solidariedade oscile ao sabor da polarização.
Publicado em VEJA de 25 de dezembro de 2019, edição nº 2666