Antonio Palocci era um dos homens mais influentes do governo Lula, quando foi ministro da Fazenda e se tornou um avalista do petismo junto ao mercado. Também era conhecedor das estratégias sujas usadas pela sigla para financiar seu projeto de poder, o que já havia sido exposto pela Lava-Jato. Por isso, Brasília tremeu no dia em que o grão-petista caiu nas garras da Polícia Federal, em setembro de 2016, na 35ª fase da operação, batizada de Omertà, um termo do sul da Itália para definir o código de honra da máfia — e, claro, uma alusão ao desejo dos investigadores de quebrar o silêncio em torno da sociedade criminosa petista. Palocci mostrou que não iria se sacrificar pelo partido. Ao então juiz Sergio Moro, em abril de 2017, disse que poderia fornecer informações valiosas.
Em junho daquele ano, o ex-ministro foi condenado a doze anos e dois meses de prisão por receber propina para interferir a favor da Odebrecht na venda de navios-sonda para a Petrobras. Ato contínuo, ele contratou advogados especialistas em delação e passou a negociar uma maneira de deixar o cárcere em Curitiba. Primeiro, procurou o Ministério Público Federal, sem sucesso. Bateu então na porta da PF e, em abril de 2018, obteve o que queria. Os relatos continham revelações explosivas, como as entregas de dinheiro vivo a Lula. Acusou ainda a ex-presidente Dilma Rousseff, seis ex-ministros, um ministro e um ex-ministro do STJ, dois ex-governadores, dois ex-senadores e dois deputados, ao menos dezesseis empresários, bancos, empreiteiras, frigoríficos e montadoras. O acordo, homologado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e pelo STF, permitiu a ele ir para a prisão domiciliar em novembro de 2018. Também conseguiu a redução da pena para nove anos e dez meses.
Na esteira dos relatos, várias investigações acabaram sendo abertas, mas o saldo foi absolutamente frustrante (menos para Palocci, claro). Na semana passada, a delação sofreu seu maior revés, quando a própria PF considerou que não havia o que aproveitar em um dos anexos. A conclusão está em um relatório demolidor feito pelo delegado Marcelo Feres Daher em inquérito baseado em acusações a Lula e a André Esteves, do BTG Pactual. Segundo o ex-ministro, o banqueiro teria proposto ao ex-presidente que ele passasse a movimentar dinheiro de propina em contas no BTG, abertas já com um saldo de 10 milhões de reais. Em troca, Esteves teria recebido informações privilegiadas sobre a queda na taxa de juros definida pelo Banco Central, em 2011, e obtido lucros vultosos com um fundo de investimentos.
Depois de investigar o caso, o delegado, considerado um dos mais técnicos e rigorosos da corporação, concluiu que não havia nenhuma relação entre Esteves e o tal fundo. Ele pertencia a um investidor com nome e sobrenome que ganhou dinheiro naquela operação e perdeu em muitas outras. “Ademais, observa-se que as afirmações feitas por Palocci parecem todas terem sido encontradas em pesquisas na internet, porquanto baseadas em dados públicos, sem acréscimo de elementos de corroboração, a não ser notícias de jornais”, escreveu.
O desfecho ruim não foi uma surpresa, já que a proposta de colaboração foi recebida com desconfiança desde que Palocci a colocou na mesa. Quem não se cansou de fazer objeções foi o hoje ex-procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos responsáveis pela negociação. “Não vou dizer que 100% da delação do Palocci seja inútil, mas a maior parte dos casos não tem a consistência probatória suficiente”, diz ele que, na ocasião, chamou os relatos de “delação do fim da picada” e a classificou como tendo “muito gelo, pouco uísque”. O MPF conversou por seis meses com o ex-ministro, até desistir em janeiro de 2018. Três meses depois, a delação foi firmada com a PF, com grande repercussão, desencadeando ações policiais de busca e apreensão e provocando celeuma até na eleição de 2018, quando, às vésperas do segundo turno, Moro tornou público um trecho com acusações a Lula, o que foi considerado por apoiadores de Fernando Haddad (PT) uma ajuda a Bolsonaro, de quem o ex-juiz seria ministro.
Uma parte dos percalços ocorridos em casos como o de Palocci pode ser atribuída à falta de experiência no uso de um instrumento ainda relativamente novo. A ajuda de criminosos em troca de benefícios apareceu na legislação brasileira em 1990, na lei de crimes hediondos — previa redução de pena em até dois terços. Em 1999, abriu-se a possibilidade de perdão judicial a delatores. Uma das primeiras colaborações nos moldes atuais foi fechada em 2004 pelo doleiro Alberto Youssef e homologada por Moro, no caso Banestado. Mas foi só em 2013, quando a lei das organizações criminosas foi sancionada, que as delações deslancharam. E a de Palocci foi a primeira fechada com a Polícia Federal, que até então não estava autorizada a realizar acordos desse tipo.
Um dos mais recentes, também em negociação com a PF, envolve o ex-governador Sérgio Cabral (veja reportagem na pág. 42). A questão é que essas delações precisam vir acompanhadas de provas ou indícios robustos. Como demonstrou o caso Palocci, essa regra, que parece óbvia, não foi seguida à risca. Em janeiro deste ano, aliás, a legislação passou a vetar o recebimento de denúncias só com base nas palavras de delatores (muitas vezes, desesperados a dizer qualquer coisa para se livrar da cadeia). Fundamental para punir criminosos e na luta contra a corrupção, as colaborações permitirão a devolução de 14 bilhões de reais aos cofres públicos e mudaram para sempre a política brasileira. Mas, para que continuem a desempenhar esse papel crucial, precisam de um aperfeiçoamento.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701