O Brasil vive, triste e inelutavelmente, uma dupla pandemia — a do novo coronavírus, multiplicada pela atávica postura negacionista do governo do presidente Jair Bolsonaro, e a econômica, alimentada pela compulsória freada das atividades, em quarentena, atalho para que o país despontasse em inglória 12ª posição no ranking das nações mais ricas do mundo em 2020, e tudo indica que poderá cair ainda mais em 2021 (leia a reportagem na pág. 32). Nos últimos doze meses, a crise sanitária impôs perdas imensas. Há, por trás da frieza da estatística, dor e sofrimento no cotidiano dos lares, e haveria como reduzi-los. Bastaria bom senso, racionalidade e lógica na lida com o vírus.
Covid-19 e a Vacinação
Na terça-feira 16, um ano depois da primeira morte, o país bateu um melancólico recorde: foram 2 841 mortes em apenas 24 horas, o equivalente a duas por minuto. No total, são mais de 282 000 óbitos e 12 milhões de casos. Não se trata, definitivamente, como previu Bolsonaro, de uma “gripezinha”. Desde o dia 22 de fevereiro, a média móvel de mortos, calculada a partir da ocorrência dos sete dias anteriores, não para de crescer — chegou a 1 965. O país acumula 10% das mortes notificadas em todo o mundo, mas tem apenas 3% da população global. Na semana passada, foi responsável por 20% das mortes pelo vírus no planeta. Segundo levantamento da Fundação Oswaldo Cruz, vive-se o “maior colapso sanitário e hospitalar da história”. O Distrito Federal e 24 estados estão com taxas de ocupação de leitos de UTI iguais ou superiores a 80% (quinze têm média igual ou superior a 90%). Salvam-se apenas Rio de Janeiro e Roraima, e no limite.
É tudo inaceitável e inadmissível, a ponto de quase desautorizar a esperança promovida pela vacinação, que, se não anda como desejado, já alcançou mais de 10,5 milhões de pessoas, o equivalente a 5% da população. Haveria justificada celebração, ponto de inflexão estampado no rosto de cada um dos idosos e profissionais de jaleco já protegidos com uma ou duas doses, mas é pouco quando se olha ao redor, e os olhos alcançam Brasília.
Como controlar a pandemia no Brasil
A dança das cadeiras deflagrada no domingo em torno do assento titular no Ministério da Saúde foi um retrato amargo das dificuldades fabricadas em torno do controle da pandemia. Bolsonaro chegou a convidar para o cargo a médica do Hospital Vila Nova Star e professora de cardiologia da USP Ludhmila Hajjar. Ela disse não, ruidosa e didaticamente. “Foi uma questão de divergência técnica”, afirmou a VEJA (leia a reportagem na pág. 28). Entenda-se por divergência técnica a permanente briga entre a ciência e o obscurantismo que grassa no país criado pelo capitão. Diante da negativa de Ludhmila, Bolsonaro tirou uma carta da manga, o cardiologista Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia — respeitado entre seus pares e que diversas vezes já demonstrou ser também favorável as máscaras e distanciamento. A escolha, portanto, pode significar uma mudança de rota — mas dependerá da postura do chefe. Afinal, é o quarto ministro da Saúde desde o início da pandemia. Luiz Henrique Mandetta (leia nas Páginas Amarelas desta edição) saiu porque fez o que o presidente não queria. Nelson Teich pediu o chapéu antes mesmo de ser possível saber o que pretendia. Bolsonaro fará de tudo, agora, para colar no general Eduardo Pazuello a culpa da inação. Bolsonaro já percebeu, ancorado em pesquisas, que a população quer ser vacinada — seja com a chinesa CoronaVac, seja com a britânica AstraZeneca. Nas redes sociais, mudou de postura. Eduardo Bolsonaro postou: “Nossa arma é a vacina”. O pai apareceu de máscara, para depois tirá-la. Será difícil o jogo de transformação — se mudar de comportamento, o presidente poderá produzir descontentamento entre seus apoiadores mais radicais, que foram às ruas no domingo 14 sem proteção alguma. Contudo, antes tarde do que nunca — se conseguir inaugurar um novo modo de lidar com a pandemia, será um imenso alívio.
Um dos modos de entender o que o Brasil deixou de fazer, e que deveria estar fazendo para evitar o dramático momento, é acompanhar os passos dados pelo governo do presidente americano Joe Biden. Logo em seu dia inaugural na Casa Branca, ele se comprometeu a fornecer 100 milhões de doses de alguma vacina contra a Covid-19 nos 100 primeiros dias no cargo. A meta seria alcançada em apenas dois meses, ainda antes do fim de março. Depois, em cadeia nacional de rádio e televisão, anunciou a vacinação para todos os adultos americanos que assim o desejarem a partir de 1º de maio. De modo a manter de pé a promessa, envolveu-se diretamente com os executivos da Johnson & Johnson para acelerar a produção do imunizante da companhia americana, que pressupõe uma única dose. “Se todos fizerem sua parte, o país poderá festejar sua independência do vírus em 4 de julho”, resumiu. Não se trata de mera retórica, e o ritmo de fabricação e aplicações parece conduzir ao bom desfecho. O democrata sabe que sua popularidade está atrelada ao sucesso no combate da pandemia, e não por acaso resumiu todas as suas iniciativas a um “esforço de guerra”, no avesso do que preconizava Donald Trump, para quem tudo era momentâneo, e o tempo trataria de reduzir a toada de casos e mortes, como mágica improvável. Não. Os Estados Unidos contavam, até a quinta-feira 18, mais de 30 milhões de casos e 550 000 mortes, um vergonhoso recorde mundial. Atento à macabra contagem, que marcará uma geração, Biden condenou, pública e ruidosamente, a decisão dos governadores do Texas e do Mississippi — não por acaso trumpistas de quatro costados — de suspender a obrigatoriedade do uso de máscara para conter a propagação do novo coronavírus, além de erguer os muros do distanciamento compulsório. Biden classificou a suspensão de “um pensamento neandertal”. A postura civilizatória parece estar vencendo, tanto do ponto de vista da imunização coletiva quanto do comportamento da sociedade.
Mortes de Covid-19 no Brasil
Na cerimônia de entrega do Grammy, o que mais se viu, além de letras provocativas, eram cantoras, cantores e bailarinos mascarados — pode-se dizer que houve mais pano gasto para cobrir os rostos do que outras partes do corpo, e o que parece detalhe é constatação de vitória do tom adequado para a atual travessia. Nos Estados Unidos houve, ainda e sobretudo, como costura da guinada decretada por Biden, a aprovação de um pacote de 1,9 trilhão de dólares de estímulo fiscal para conter os danos econômicos provocados pela pandemia — o montante é o maior desde a Grande Depressão de 1929. Do lado dos Republicanos, é natural, foram disparadas severas críticas por aporte tão grande do Estado, mas talvez não houvesse outra saída. De todo modo, entre os defensores e os opositores, a discussão se deu em alto nível, como deve ser em situações de calamidade pública. A razão voltou a sentar no Salão Oval, e ela pode ser medida na ponta do lápis. Uma semana antes da posse, a média móvel diária de mortes por Covid-19 nos Estados Unidos era de 3 260, tendo em vista os sete dias anteriores — no Brasil, era de 981. Em 8 de março, deu-se a inversão. O Brasil apareceu na frente, com média de 1 525, ante 1 498 entre os americanos. Não é mera coincidência ou decisão do vírus. Foi resultado de uma escolha política.
O Brasil pede urgência, dado o volume de mortos, a saturação hospitalar e a pressão da nova variante do vírus, a P1, que circula em todo o país — estudos indicam que ela pode se espalhar em velocidade 2,5 vezes mais rápida do que o tipo comum do microrganismo. O que fazer? Manter o distanciamento social e, se for o caso, estabelecer isolamentos draconianos, como fez o governador de São Paulo, João Doria, e apostar, cada vez mais, na esperança líquida: a vacina. Considerando todos os acordos para a compra de imunizantes já fechados, o Brasil diz ter garantido 560 milhões de doses até o fim do ano com seis laboratórios e o consórcio Covax Facility. A conta inclui produtos ainda não avalizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas o número é muito bom. Para que se vacine uma fatia de 70% da população, taxa fundamental para atingir a fase de imunidade de rebanho, são necessários por volta de 300 milhões de doses, incluindo a leva que pressupõe duas aplicações. Vê-se, portanto, que finalmente foi assegurado um volume mais do que o necessário. A folga foi adotada por outros países, de modo a controlar a distribuição, apesar de possíveis atrasos de entrega.
A velocidade de imunização, porém, é um gargalo. Até agora, com a média de 330 000 aplicações diárias, o país conseguiu administrar a primeira dose em 10,5 milhões de pessoas. É preciso acelerar o ritmo (e o sistema público de saúde consegue aumentar esse número em pelo menos cinco vezes). Com as doses necessárias e planejamento — além de um ministro favorável às agulhas —, parece haver um caminho de esperança. Basta ver, a título de confirmação das evidentes benesses da vacina, o que já se verificou no Rio de Janeiro, apesar de praias ainda cheias: entre os idosos com 90 anos ou mais, a primeira faixa etária a entrar no calendário de vacinação do governo, a taxa de internação por Covid-19 caiu 20% após pouco mais de um mês do início da campanha, em 18 de janeiro. A ciência salva — mas é fundamental que as autoridades não a boicotem.
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Colaboraram Mariana Rosário e Alexandre Senechal
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730