Igreja carioca de 300 anos recupera relógio parado há um século
Inativa desde 1922, relíquia da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores voltará a funcionar em agosto
Em 1743, comerciantes e moradores da tradicional Rua do Ouvidor decidiram erguer um oratório onde colocaram as imagens do Menino Jesus e de Nossa Senhora da Lapa. A pequena construção inaugurou um período de prosperidade para os negociantes, que atribuíram as bênçãos à Santa Mãe, e alimentou o desejo de se construir um templo: a Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, cuja história, que vem sendo recuperada agora, se mistura com a da cidade do Rio de Janeiro.
Apesar de seus quase 300 anos de idade, o templo entrou em declínio e passou por períodos pouco alvissareiros. Os sinos, presenteados pelo Barão da Lagoa, que não economizou no regalo e ofereceu o primeiro carrilhão de 12 sinos do Brasil, em 1872, não dobravam há mais de cinco décadas. O relógio, outra relíquia, já não marcava o passar do tempo há mais de um século, desde 1922. A Igreja chegou a ser interditada pela Defesa Civil, em 2020, devido ao seu péssimo estado de conservação.
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No entanto, novos ares parecem circular. Protagonizando um projeto da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que criou uma comissão de patrimônio para tentar reativar templos históricos, a Igreja da Lapa vem passando por um novo alvorecer. Seus sinos anunciam os novos sinais dos tempos desde o dia 2 de maio, quando voltaram a tocar de hora em hora, depois de uma minuciosa restauração feita pelo famoso Manoel dos Sinos, um dos últimos especialistas em relógios e sinos de igreja do país.
Agora, também, o relógio deixará de estar certo apenas duas vezes por dia, como todo relógio parado, e passará a contar a passagem do tempo. “Colocar o relógio para funcionar é extremamente simbólico para mim”, diz Cláudio André Castro, comissário administrativo da Irmandade, que vem tocando a recuperação da Igreja desde março de 2023 e foi o responsável pela sua reabertura. “Isso porque, quando eu cheguei na Igreja, vi que estava em um lugar onde o tempo parecia ter parado.”
A restauração será concluída ainda este mês e também vem sendo conduzida por Manoel dos Sinos com peças encomendadas da Canonico Di Lagonegro, a maior empresa de relógios de torres e igrejas da Itália, em atuação desde 1879. A expectativa é que o relógio funcione 24 horas por dia e, embora tenha ganhado ponteiros e engrenagens novas e modernas, conserve a mesma aparência histórica que sempre marcou a fachada. “Queremos que ele funcione exatamente como funcionava há um século. Será como voltar no tempo”, diz Manoel dos Sinos. Um sistema informatizado deve ligar o funcionamento dos relógios ao dos sinos, com perfeita sincronia entre a movimentação dos ponteiros e o toque.
As obras de revitalização realizadas agora derrubam a ideia de “obra de igreja”, que geralmente remete a obras que se prolongam por um longo período, e recuperam a tradição de celeridade. No século XVIII, as obras para a construção da Igreja caminharam num ritmo veloz para empreendimentos desse tipo. As fundações foram feitas em 1747, e em 1750 a parte destinada à celebração das missas já estava pronta. As obras continuaram até 1755 e a decoração interna, em estilo rococó, ficou pronta em 1766. No século XIX, o templo passou por uma remodelação que durou uma década (de 1869 a 1879).
Em 1893, oficiais da Marinha, sentindo-se menos prestigiados que os colegas do Exército, iniciaram um movimento contra o Marechal Floriano Peixoto. Estava iniciada a Revolta da Armada. Uma bala de canhão, disparada pelo famoso encouraçado Aquidabã, atingiu em cheio a torre sineira, derrubando a imagem em mármore de Nossa Senhora da Lapa de uma altura de 25 metros. Apesar do impacto, a santa quebrou apenas alguns dedos. O acontecimento marcou o primeiro registro de bala perdida da história do Rio de Janeiro, visto que não era a intenção atingir a imagem e sim o Palácio do Itamaraty, então sede do governo. A santa e a bala de canhão seguem à mostra na Igreja até hoje.
“A gente associa a resiliência da Santa com a resiliência do carioca e do centro do Rio”, diz Castro. “O centro da cidade vem experimentando um franco processo de revitalização e a Igreja emerge como um símbolo disso. Queremos que o relógio seja o marco de um novo tempo, para a Igreja, para a cidade e para o centro do Rio”.