O ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega ganhou notoriedade nacional depois que se descobriu que ele chefiava o chamado Escritório do Crime — um grupo de matadores de aluguel que atuava no Rio de Janeiro a serviço de bicheiros e milicianos. Ficou mais famoso ainda quando se soube que ele também tinha uma estreita ligação com a família do ex-presidente Jair Bolsonaro. Por anos, a mãe, a mulher e um dos melhores amigos do policial, o também ex-PM Fabrício Queiroz, foram assessores do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em 2019, acusado de homicídio e com a prisão decretada pela Justiça, Adriano fugiu. Um ano depois, foi morto. Esse é o ponto de partida do capítulo final de uma história que reúne ingredientes de um thriller de ação. Havia gente importante entre os “clientes” do Escritório do Crime que torcia para que o ex-capitão nunca mais aparecesse. Havia gente influente ligada às vítimas que queria localizá-lo a qualquer custo. E havia gente poderosa que temia a revelação de segredos capazes de fulminar biografias e destruir certas carreiras — políticos, inclusive. O destino de alguém com um perfil tão singular assim era previsível.
Adriano foi localizado no interior da Bahia. A polícia realizou uma gigantesca operação para capturá-lo, usando drones, aeronaves, equipamentos de geolocalização e armamento pesado. No dia 9 de fevereiro de 2020, o ex-capitão foi cercado no município de Esplanada, a 165 quilômetros de Salvador. Estava sozinho e, segundo a versão oficial, armado. Ao perceber a chegada dos policiais, reagiu e foi abatido com dois tiros. A família afirma que foi uma execução sumária, uma queima de arquivo planejada para evitar que ele comprometesse aquela gente importante, influente e poderosa, incluindo políticos. A suspeita se sustentava diante de fatos que ocorreram antes, durante e depois do suposto confronto. Quatro anos depois, o Ministério Público finalmente concluiu a investigação sobre o caso. VEJA teve acesso às mais de 4 mil páginas de documentos, perícias, depoimentos, fotografias e relatos de testemunhas que ajudaram a reconstituir os últimos instantes de vida do ex-capitão. O trabalho, porém, não foi capaz de elucidar definitivamente o mistério. Ainda há muitos detalhes intrigantes e perguntas que ficaram sem respostas.
Antes de encontrado, Adriano havia confidenciado a pessoas próximas que sua morte havia sido decretada. Os interessados, segundo ele, integravam um consórcio formado por bicheiros, milicianos, policiais e políticos. Citou um deles em particular: o ex-governador Wilson Witzel. O ex-capitão revelou que, em 2018, teria arrecadado 2 milhões de reais do crime organizado para a campanha eleitoral do então candidato ao governo do Rio de Janeiro. Na época, Witzel negou qualquer tipo de envolvimento com o miliciano e anunciou que processaria Júlia Lotufo, a viúva, que afirma ter ouvido a revelação da boca do próprio Adriano. “Meu marido foi envolvido numa conspiração armada pelo governador do Rio, que queria matá-lo como queima de arquivo”, disse ela a VEJA, uma semana antes do cerco ao ex-capitão. Confronto ou execução? A investigação do Ministério Público da Bahia afirma que as informações obtidas confirmam, em parte, a versão da polícia sobre o confronto, mas, ao mesmo tempo, também aponta uma série de falhas de procedimento, fatos nebulosos e eventos absolutamente estranhos que alimentam a segunda hipótese, como se verá a seguir.
A OPERAÇÃO ESPLANADA
Depois de fugir do Rio de Janeiro, Adriano perambulou durante meses por fazendas no interior do Nordeste. A polícia passou a monitorar os passos dele através de seus familiares e amigos. Em janeiro de 2020, após receber uma visita da esposa, o ex-capitão foi cercado pela primeira vez na Costa do Sauípe (BA), mas conseguiu escapar. A sorte o abandonaria poucos dias depois. Escondido na chácara de um amigo na área rural de Esplanada, o miliciano sabia que os policiais estavam em seu encalço e tinha tudo pronto para deixar o país. O plano de fuga elaborado contava com um resgate de helicóptero patrocinado por um grupo ligado à contravenção do Rio. Não deu tempo. A polícia interceptou a viúva em uma blitz, e o motorista dela deu pistas sobre a localização do novo esconderijo. A Secretaria de Segurança da Bahia preparou então uma das maiores ações de captura já realizadas pela polícia baiana. Foram mobilizados setenta homens, além de um drone, um helicóptero, veículos táticos e armamentos pesados. Para evitar vazamentos, os policiais convocados para a missão só souberam a identidade do alvo às 23 horas da véspera, quando também foram advertidos sobre a destreza do ex-capitão: ele havia sido o primeiro colocado em treinamentos de tiro e sobrevivência na mata, tinha amplo conhecimento operacional e dificilmente se entregaria, disseram os comandantes.
Os militares receberam orientações específicas para ter cuidado com armadilhas e eventuais emboscadas no trajeto. Iniciaram ainda de madrugada uma patrulha a pé para ocupar posições estratégicas. Viaturas motorizadas cercaram a propriedade onde o miliciano estaria refugiado. Tudo milimetricamente planejado para evitar incidentes. Às 6 da manhã, o local foi invadido. Granadas com efeito de luz e som para dificultar qualquer reação foram jogadas dentro do esconderijo. Mas Adriano não estava mais lá. Um vizinho, porém, informou aos policiais ter visto nas proximidades um homem com as características da pessoa que estava sendo procurada. As equipes se dividiram para ampliar o raio da busca. Uma testemunha disse que, às margens de uma rodovia, distante aproximadamente 8 quilômetros da chácara, uma casa com a luz acesa na varanda e uma rede estendida chamava atenção. Ao se aproximarem do local indicado, um tenente e dois soldados da patrulha viram quando Adriano correu para dentro do imóvel. O ex-capitão se recusou a abrir a porta. Protegidos por um escudo balístico, os PMs arrombaram o imóvel, entraram e teriam sido recebidos à bala.
EXECUÇÃO OU CONFRONTO?
Adriano foi abatido com dois tiros — um de carabina e outro de fuzil. A trajetória de uma das balas, de cima para baixo, reforçava a hipótese de uma execução. Além disso, o corpo tinha dois ferimentos intrigantes: um corte na testa e uma queimadura arredondada no peito. Os laudos das polícias baiana e fluminense atestaram que houve troca de tiros. A perícia da Polícia Técnica da Bahia projetou que o ex-capitão estava a cerca de 4,6 metros dos oponentes quando foi alvejado e concluiu que ele morreu depois de ter recebido o segundo disparo. Na queda, teria batido a cabeça em um móvel da casa, resultando na lesão da testa. Já os legistas do Rio de Janeiro afirmaram que havia indicativos de que o ferimento ocorreu com o ex-capitão ainda vivo. Na versão dos PMs, Adriano não teria morrido imediatamente e, por isso, eles o levaram a um hospital que fica a 10 quilômetros do local. Os médicos, por sua vez, atestaram que ele já chegou sem vida. Havia outros pontos mal explicados. Os exames não identificaram a presença de chumbo nas mãos de Adriano, o que normalmente acontece quando alguém faz disparos, e ninguém conseguiu definir o que seria a queimadura arredondada no tórax do miliciano.
Diante das dúvidas e divergências, os investigadores pediram ajuda à Polícia Federal, entre outras coisas, para reconstituir o crime e reexaminar o corpo de Adriano. Quase quatro anos depois, as etapas que foram previstas para a reconstituição não foram concluídas, e a exumação do corpo, realizada em julho de 2021, um ano e meio depois do assassinato, pouco ou quase nada contribuiu para esclarecer a dúvida. Ao contrário. A respeito do ferimento na testa, os peritos federais concluíram que “a lesão ocorreu em momento antecedente ou próximo/imediatamente subsequente à morte”. Ou seja, o corte pode ter acontecido antes ou depois do tiroteio. Já sobre a queimadura no tórax, o adiantado estado de decomposição do corpo inviabilizou o aprofundamento do exame. Os técnicos federais ainda foram instados a esclarecer se havia ou não chumbo nas mãos de Adriano. Os exames não encontraram resquícios do metal. O Ministério Público anexou depoimentos de 28 testemunhas, entre elas Júlia Lotufo, que reafirmou que Adriano fugiu porque sabia que ia ser executado e disse ter certeza de que ele não estava armado no momento da operação.
A CENA DO CRIME
Um dos procedimentos elementares que qualquer policial aprende na academia é sobre a necessidade de preservar a cena do crime. Os PMs que alvejaram o miliciano admitiram em depoimentos que não houve essa preocupação. Os projéteis, por exemplo, são provas importantes para determinar se realmente houve troca de tiros, o tipo de armamento envolvido, o trajeto e a distância dos disparos. Um dos laudos elaborados pela Polícia Federal destaca que foram encontradas apenas três cápsulas da pistola que teria sido usada por Adriano, apesar de ele ter supostamente disparado sete tiros. Os peritos levantaram a hipótese de uma mesma bala ter ricocheteado, mas, ainda assim, a conta não fechou. Seria esperado, segundo eles, que fossem encontradas de cinco a sete cápsulas detonadas. A ausência delas, porém, não prova que o confronto não existiu, já que elas podem simplesmente ter sido subtraídas por alguém que entrou na casa após o crime — e muita gente entrou. Aliás, as cápsulas das balas usadas pelos PM também não foram localizadas.
Ao longo da investigação, o Ministério Público solicitou sucessivas vezes que a Polícia Federal prestasse apoio técnico para novas perícias. Além da reconstituição e da exumação, os promotores solicitaram uma “missão exploratória” para sanar dúvidas técnicas que os peritos baianos e fluminenses não conseguiram. Por considerar que a cena do crime já havia sido completamente devassada, a PF nunca atendeu ao pedido. Em resposta a um dos ofícios, os federais ainda destacam um fato grave que impedia o trabalho: a arma supostamente utilizada por Adriano — uma pistola Glock, calibre 9 mm — havia desaparecido. Soube-se que ela fora recolhida pela PM baiana após o confronto, tendo reaparecido tempos depois em posse da Polícia Civil do estado.
IRONIA DO DESTINO
O curso da investigação sobre as circunstâncias da morte de Adriano da Nóbrega foi afetado diretamente por uma sucessão de descuidos, intencionais ou não, da polícia baiana. Embora a Operação Esplanada tenha sido executada com o uso de uma aeronave e um drone de observação, não houve gravação de imagens — ao menos elas nunca apareceram. O MP, por isso, teve de lastrear suas conclusões essencialmente nas perícias técnicas. O corpo de Adriano foi submetido a tomografia computadorizada e a exames, que foram confrontados com os depoimentos e as poucas evidências colhidas no local do crime. Ficou comprovado que o ex-capitão foi alvejado por dois tiros, um que entrou pelo tórax à esquerda e percorreu trajeto de baixo para cima, provocando uma lesão no pescoço, e outro que partiu de cima para baixo, entrou pela clavícula direita e saiu pelas costelas — esse que, segundo a família de Adriano, provaria a execução sumária. Para os peritos baianos, o miliciano foi atingido pela primeira vez, se desequilibrou e, enquanto caía, recebeu o segundo disparo. A Polícia Federal também considerou essa dinâmica como uma “hipótese válida”.
O Ministério Público reuniu laudos da Polícia Federal, de uma universidade, de um perito externo, das polícias técnicas da Bahia e do Rio, investigações da Polícia Civil, de um inquérito militar e dos próprios promotores da instituição e concluiu que não se chegou “à verdade real, à ‘certeza absoluta’” do que aconteceu a partir das primeiras horas da manhã daquele dia 9 de fevereiro de 2020. No fim do ano passado, os promotores protocolaram na Justiça parecer em que afirmam não haver “lastro probatório mínimo” para formalizar uma denúncia contra os policiais que estiveram frente a frente com o miliciano, nem tampouco convicção para atestar que eles agiram no estrito cumprimento do dever, sem excessos. Por causa disso, pediram o arquivamento do caso.
Quando era capitão do Bope, Adriano da Nóbrega tinha em seu prontuário diversas acusações de tortura e assassinato. A dinâmica dos crimes era sempre a mesma. As abordagens de rotina terminavam em confrontos, em que o “bandido” atirava primeiro. Os inquéritos também terminavam quase sempre em pedidos de arquivamento, diante da ausência de provas técnicas.
Em Esplanada, a situação se inverteu. Adriano era o bandido. O tenente e os dois soldados que localizaram o miliciano garantem que o objetivo era prendê-lo, mas ele resistiu e provocou o confronto. Adriano era um exímio atirador, mas errou todos os tiros, mesmo estando a uma distância de menos de 5 metros dos alvos. Em poucos segundos, o temido chefe do Escritório do Crime caiu morto. O registro da pistola que teria sido usada por Adriano, a que sumiu e reapareceu tempos depois, estava parcialmente raspado. Policiais disseram que o ex-capitão estava de bermuda e calção quando o Bope entrou na casa. Os médicos, por sua vez, relatam que ele chegou seminu ao hospital. A estranha queimadura no peito, um indício de tortura, também vai continuar sem explicação. Segundo um dos peritos, ela pode ter sido produzida “por um instrumento de bordas circulares, aquecido” — o cano de uma arma, por exemplo. Mas essa é apenas uma hipótese sem nenhuma comprovação. Adriano morreu da mesma maneira que matava. Caso encerrado.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875