Um dos lugares mais sagrados de Israel, o Muro das Lamentações simboliza a aliança de Deus com o povo judeu. Ele é o que restou do chamado Segundo Templo de Jerusalém, reformado durante o reinado de Herodes. Ali, na estrutura formada por pedras de calcário, fiéis rezam todos os dias e visitantes costumam colocar nas suas brechas mensagens escritas. Uma campanha em curso na internet faz uma alusão a esse marco, mas dentro de um contexto muito diferente: no lugar da reverência espiritual, a ideia é simbolizar a mácula por atos que não podem mais permanecer nas sombras. Criada em 2014 por uma ONG em Nova York, nos Estados Unidos, a página Wall of Shame (Muro da Vergonha, em português) já catalogou 190 judeus acusados de pedofilia ao redor do mundo. O movimento é uma tentativa pioneira de fazer com que lideranças da religião comecem a enfrentar o problema.
Único brasileiro na lista do Muro da Vergonha, Moises Marcos Aschendorf Ejczis, de 34 anos, vive em São Paulo. Em 2017, ele foi preso por tentativa de assédio a um menino de 11 anos e responde em liberdade a processo por aliciamento de menor. Ejczis se aproximou do garoto quando ele jogava bola em um parque e lhe prometeu um controle de videogame novo em troca de seu número de telefone. Na mesma conversa, perguntou se o menino se masturbava e se já havia tocado em alguém. Desconfiado, o menor deu o contato do celular da mãe, mas foi seu padrasto quem começou a trocar mensagens com Ejczis, fazendo-se passar pela criança. Antes de marcar o encontro em uma lanchonete, o homem disse ao menino que fosse “limpinho e cheiroso”, e ainda perguntou se o “tinha achado bonito e gostoso”. A polícia foi chamada ao local para realizar o flagrante. Um mês antes, Ejczis já havia sido indiciado em Osasco, na Grande São Paulo, por “estupro de vulnerável”.
Denúncias de casos de violação sexual de menores por religiosos se tornaram recorrentes no âmbito da Igreja Católica, que se viu obrigada a discutir o assunto publicamente após a enxurrada de vítimas que decidiram levar suas histórias para os tribunais ao longo das últimas décadas. Na comunidade judaica, mais reduzida e fechada, os seguidores da Torá têm como regra não acusar legalmente alguém da mesma crença. Com algumas exceções, nesses casos, os conflitos são discutidos por um tribunal rabínico e a questão, no geral, acaba sendo resolvida sem a intervenção da Justiça. Brasileiro casado com uma argentina, o empresário Avraham Fromer quebrou a regra de silêncio depois que sua filha de 8 anos, que também é brasileira, foi molestada pelo rabino Isaac Chocron em Buenos Aires, onde a família mora. “Ele a levava para os fundos da sinagoga, colocava a menina no colo e a tocava”, afirma Fromer. O caso foi encaminhado à Justiça da Argentina, mas não andou por falta de provas. Na semana passada, o pai reuniu o que seriam novas evidências do comportamento do rabino, incluindo um vídeo no qual ele passa a mão no corpo de uma menor, na esperança de reabrir o processo. Fromer não teve melhor sorte ao procurar ajuda dentro da comunidade judaica, até mesmo no Brasil. Segundo ele, foram feitos cerca de cinquenta contatos com lideranças religiosas. “Recebi a orientação de manter o assunto somente no âmbito da comunidade”, diz Fromer. “A política para acobertar os crimes desse tipo é institucionalizada.”
Além do caso de pedofilia envolvendo Ejczis, tramita ação criminal no Brasil contra o rabino Ivan Uderman, que é acusado de abuso sexual infantil. A denúncia partiu de sua ex-mulher e a vítima é o filho do casal, na época com 4 anos. Uderman mora atualmente em Jerusalém, onde dirige uma instituição de ensino religioso e organiza cerimônias de bar mitzvá (iniciação religiosa de rapazes) no Muro das Lamentações. O rabino já vivia em Israel quando a Justiça de São Paulo o condenou a catorze anos de prisão por crime sexual, em junho passado. A decisão é de primeira instância, e ele recorre em liberdade. Uderman nega as acusações e diz que o processo é uma artimanha da ex para mantê-lo longe da criança após o divórcio conturbado do casal. Em outro caso da mesma natureza, a Interpol emitiu um alerta no ano passado para que a Justiça brasileira prendesse o rabino israelense Daniel Berdichevski, acusado de estupro, agressões contra familiares e suborno de testemunhas em seu país de origem. Ele morava em uma rua nobre no bairro de Higienópolis, na região central de São Paulo, e tinha se casado com uma brasileira. Berdichevski nega tudo. Sua extradição para Israel foi autorizada pelo STF há cerca de três meses.
Em todo o mundo, começam a vir à tona escândalos semelhantes. Nos Estados Unidos, 38 ex-alunos de um colégio judaico em Nova York recentemente acusaram rabinos de abusos cometidos entre os anos 60 e 80. Molestado na infância por dois rabinos, o australiano Manny Waks se tornou um ativista contra a pedofilia em sinagogas ao redor do planeta. Recentemente, esteve em São Paulo para visitar rabinos e conscientizá-los da importância do tema. “O Brasil é um dos países mais atrasados no combate a crimes sexuais em sinagogas”, diz.
Os líderes da religião no país rechaçam esse tipo de crítica. Em nota enviada a VEJA, o presidente da Federação Israelita de São Paulo, Luiz Kignel, afirma que “fatos deploráveis, quando conhecidos pela liderança comunitária, são orientados para busca das autoridades policiais competentes. Qualquer sugestão de que haja uma conduta de acobertamento de casos de pedofilia na comunidade judaica é totalmente falsa e serve para reforçar sentimentos antijudaicos”. Embora o número de denunciados pelo Muro da Vergonha seja pequeno diante dos 15 milhões de judeus espalhados pelo mundo, a existência de uma campanha do tipo representa um indício de que a comunidade judaica acordou e sente que é preciso fazer muito mais a fim de combater e punir os monstros que se aproveitam da condição de líderes espirituais para se aproximar de menores de idade e molestá-los.
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653