Lava roupa todo dia: no isolamento, famílias encaram a vida sem empregada
A mudança, que toma conta das redes sociais, abre uma reflexão sobre as relações servis no Brasil
Entre as muitas mudanças inimagináveis que o planeta vem enfrentando em consequência da pandemia de Covid-19, uma afeta diretamente o Brasil: pela primeira vez desde o descobrimento, praticamente, boa parte das famílias está tendo de se virar sem “secretárias”, “assistentes”, “ajudantes” ou o nome que se dê hoje em dia às empregadas que cuidam do trabalho doméstico. Morando longe, convivendo com um grande número de pessoas e tendo de pegar transporte público, as domésticas se tornaram um risco para seus patrões — e eles para elas, é claro — e foram dispensadas, ao menos temporariamente, o que obrigou muita gente a pegar no pesado pela primeira vez na vida. Espelho (um tanto distorcido) do cotidiano, as redes sociais viraram palco de uma espécie de reality show da faxina, em que anônimos e famosos — muitos, muitos famosos — se exibem lavando louça, varrendo a casa e desvendando os mistérios do aspirador de pó. São imagens que refletem o momento, sem dúvida, mas nem por isso deixam de abrir uma fresta para a reflexão sobre as relações servis tão enraizadas na cultura nacional. “A pandemia está jogando luz sobre uma realidade brasileira que remete ao período escravista”, aponta a historiadora Mary Del Priore.
A estranheza que todo mundo sente ficando dentro de sua residência o dia inteiro se amplia quando a família tem de dar conta da casa, comida e roupa lavada, um conjunto de atividades que a população mais favorecida quase sempre terceirizou. Estudos mostram que o Brasil tem o maior contingente de domésticas do mundo: segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), são mais de 6 milhões de pessoas trabalhando em casas de família, 92% delas mulheres, a maioria negra. “Isso ainda é reflexo da transição do trabalho escravo para o ofício doméstico remunerado, uma demonstração de que a dinâmica servil e a prevalência de afrodescendentes se mantiveram”, ressalta a historiadora Lorena Féres Telles, autora de um livro sobre o tema. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos — outro país de passado escravagista — contratar pessoas para cuidar dos afazeres da casa atualmente é exclusividade dos muito ricos, no Brasil o hábito permanece entranhado, alimentado por um sistema de dependência de parte a parte. “Além do legado histórico, a desigualdade social e a falta de qualificação criam um círculo vicioso”, observa o filósofo Luiz Felipe Pondé. Por isso mesmo, ele não tem esperança de que a mudança se sustente para além da pandemia. “Não tenho dúvida de que essa experiência de igualdade é temporária. As domésticas voltarão”, afirma.
Enquanto isso, na falta de viagens glamourosas, festas de arromba e comprinhas que pre-ci-sam ser compartilhadas, uma infinidade de fotos e vídeos postados nas redes sociais pelos isolados sociais estampa mãe, pai, filha e filho empenhados em alguma atividade do lar que, até pouco tempo atrás, só conheciam de ouvir falar. Com benefícios extras, inclusive. A atriz Juliana Paes publicou nos stories do Instagram um vídeo em que passa a vassoura na casa e filosofa: “Cheguei à conclusão de que varrer pode ser muito terapêutico. Uma coisa meio de ficar meditando”. Flavia, mulher do cantor Luciano Camargo, mostrou o marido lavando panos (não muito) sujos no tanque e aproveitou para exaltar seu caráter: com ele não tem “mi-mi-mi ou ego”. Moradora de um apartamento de 800 metros quadrados em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, a apresentadora Adriane Galisteu exibiu nas redes sociais bolhas e rachaduras nos dedos após limpar o banheiro. “Não fazia uma faxina havia dez anos”, disse a VEJA. “Estou só com um dos meus cinco ajudantes e dedico cada dia a deixar brilhando uma parte da casa: já limpei a academia, a sala de brinquedos. Estou até querendo consertar uns rejuntes”, brinca.
No caso das celebridades, fica sempre a pulga atrás da orelha: é verdade ou só pose? “É o tipo de postagem que humaniza, cria empatia e uma identificação maior da pessoa com o público. Funciona bem como marketing”, diz Igor Fidalgo, da agência Neon Mind, especializada em branding digital. A atriz Maitê Proença, de 62 anos muito bem conservados, também desempenha seu papel no show da limpeza nas redes e concorda que pode parecer forçado. Mas garante que ela, de fato, dispensou os empregados. E admite que sim, está estreando na faxina. Maitê já publicou vídeo em que dança, animada, com um rodo, e outro em que aparece passando o aspirador de pó (“Se você é como eu, está fazendo isso pela primeira vez, recomendações: troque apoio de perna, alongue”). Conta com orgulho que também domou o “bicho de alta complexidade” que é a máquina de lavar roupa e está se arriscando na cozinha. “Essa doença nos nivelou abruptamente”, reflete. Nos lares brasileiros movidos a domésticas, é um avanço — pelo menos enquanto durar.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682