Lideranças femininas ganham espaço em empresas de tecnologia no Brasil
Bem-vinda, a mudança reflete os novos anseios igualitários da sociedade
O poder do exemplo
Com quase vinte anos de carreira em serviços digitais, trabalhou na inserção do PayPal no Brasil, em 2010. Antes disso, gerenciou o e-commerce da Fnac. Defende a ideia de que a empresa tenha 53% dos cargos ocupados por mulheres. “Escolhi ser uma líder que aposta em diversidade”, diz Paula Paschoal, CEO do PayPal
Nos últimos anos, o movimento feminista deflagrado principalmente por meio de campanhas públicas como o #metoo — que deu publicidade aos casos de assédio sexual em Hollywood — jogou luz sobre uma questão incômoda: a presença quase irrestrita do machismo na sociedade, nos mais diferentes segmentos e regiões, pautando ambientes em que homens e mulheres coexistem, em casa, na escola e no trabalho. Nesse cenário, era comum até pouquíssimo tempo atrás classificar que determinada área ou atividade fosse “coisa de menino” e, portanto, um espaço que as mulheres não deveriam ter interesse em ocupar. Foi assim com o futebol, a matemática e, é claro, a tecnologia. Felizmente, a lógica começa a ser invertida em uma vibrante guinada que se deve aos anseios dos novos tempos. Direto ao ponto: empresas multinacionais de tecnologia passaram a apostar em mulheres para ocupar os mais altos cargos de gestão no Brasil. Há, pelo menos, meia dúzia de executivas liderando corporações colossais da área digital. O mais recente anúncio veio da IBM, uma das maiores empresas dos Estados Unidos, com 110 anos de história. Pela primeira vez no Brasil, a companhia tem uma mulher no cargo de gerente-geral, a paulista Katia Vaskys.
Orgulho em ser diferente
Com duas passagens pela empresa — a atual soma dezessete anos —, também empreendeu na área de consultoria. Além do Brasil, trabalhou no Canadá, na Argentina e no México. “Acredito muito no poder da autenticidade”, diz Gisselle Lanza, diretora-geral da Intel
A movimentação brasileira está de braços dados com outras regiões do mundo. Na Espanha, companhias de peso como HP, LinkedIn e Google são lideradas por mulheres. Nos Estados Unidos, Sheryl Sandberg causou estrondo no mercado ao assumir o cargo de COO (chefe operacional) do Facebook. Trazer à tona a ausência de mulheres tem deixado de ser um tabu dentro das empresas e se tornado uma política interna com metas bem definidas. Na Intel, empresa líder em processadores, o objetivo é que, até 2030, 40% dos cargos técnicos da organização sejam ocupados por mulheres e que o número de líderes do sexo feminino dobre. Hoje, 25% das posições de programação e 20% dos cargos de chefia da empresa nos Estados Unidos são ocupados por profissionais do sexo feminino, um número ainda assim expressivo na comparação com a média de executivas no Brasil. Contudo, a Intel tem um bom exemplo no mais alto escalão: Gisselle Ruiz y Lanza, no posto de presidente da operação brasileira. “Os gestores são treinados para realizar entrevistas de contratação que sejam amigáveis do ponto de vista de diversidade e inclusão. Isso não quer dizer que ele deve contratar necessariamente uma mulher, mas que ele deve ter um painel diverso para a escolha”, disse a executiva a VEJA.
Não se trata somente de um livre interesse das companhias em apostar na variedade de gênero de forma natural. A movimentação é também uma exigência de um mercado marcado por consumidores cada vez mais engajados em causas sociais. “Hoje em dia, as empresas são cobradas para que mostrem suas ações envolvendo diversidade. Os investidores querem saber quais são as políticas de inclusão e se elas funcionam”, diz Élica Martins, sócia da consultoria Grant Thornton Brasil. Os recrutadores apontam que o aumento de firmas que procuram mulheres para cargos executivos foi de 25% nos últimos três anos. “Lentamente, o entendimento equivocado de que só homens saberão desempenhar esses papéis vai caindo”, diz Paulo Moraes, diretor da área de recrutamento de tecnologia na Talenses. “Algumas empresas chegam a flexibilizar pré-requisitos da vaga para que possam contar com uma mulher no time, tamanha a importância da presença delas”. A flexibilização está ligada ao que se chama “gap” de formação, algo como a diferença entre homens e mulheres em seus diplomas acadêmicos e formações extracurriculares, o que complica a equação para elas. Uma pesquisa da consultoria McKinsey exemplifica como o número de mulheres que poderiam formar-se em tecnologia é inferior ao que deveria ser quando estende-se a lupa sobre o interesse de jovens estudantes em relação ao ramo. De acordo com o estudo publicado pela empresa 2018, 47% das garotas no ensino fundamental e médio têm interesse em computação, mas apenas 16% delas chegam a pegar diplomas universitários na área. “É preciso dar condições e incentivar as meninas e mulheres a ficar na área, a se qualificar”, diz Camila Achutti, presidente da MasterTech, uma escola de habilidades tecnológicas com forte apelo à diversidade. “Do contrário, daqui dez anos essa geração de líderes que estamos vendo não terá sucessoras disponíveis. Não dá para querer contratar só altos cargos, é preciso investir desde a base.”
Dobradinha feminina
Após dezenove anos na Schneider Electric, onde ingressou como gerente de vendas, a engenheira ocupa desde 2019 o cargo que foi precedido por Paula Bellizia, hoje VP de marketing do Google na América Latina. Tania Cosentino, presidente da Microsoft
A família também desempenha papel fundamental na manutenção das profissionais mulheres no mercado de trabalho. “A migração de sistemas de informação sempre ocorre de madrugada, o que pode ser um empecilho para uma mãe que amamenta, por exemplo”, diz a professora Pollyana Notargiacomo, especialista em tecnologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “A divisão igualitária de tarefas em casa é fundamental.”
Pensar em mulheres na tecnologia, porém, não é apenas invenção do nosso tempo, mas também resultado de uma característica do setor desde a sua gênese. É da inglesa Ada Lovelace o mérito de ter produzido o primeiro algoritmo de computador que se tem notícia. A ideia inicial era programar um tipo de máquina analítica idealizada pelo inventor Charles Babbage, que ela conheceu em 1833, mas com sua morte precoce, aos 36 anos, a jovem nunca viu o código rodar. Na década de 1940, quando os computadores digitais começaram a existir de fato, as mulheres eram responsáveis por escrever os softwares para as máquinas. Os homens não estavam interessados na tarefa de desenvolvedores e até consideravam a tarefa servil.
Otimismo e capacidade de transformação
Cientista social de formação, nunca deixou de enxergar na tecnologia um poder transformador. Antes de entrar na SAP, em 2017, trabalhou vinte anos na HP e se especializou em gestão de TI e administração. “Sou otimista e realista. Vejo os avanços na área, mas podemos melhorar” Adriana Aroulho, presidente da SAP
Eles só debutaram no setor em meados de 1950 e 1960, nos Estados Unidos, com uma volumosa abertura de vagas relacionadas ao interesse das empresas em ter sistemas automatizados próprios para processar folhas de pagamento e outros dados internos. A balança entre os gêneros, no entanto, atingiu a disparidade em meados dos anos 1980, quando o computador pessoal passou a fazer parte das casas americanas e, normalmente, era dado como presente dos pais aos rapazes. Assim, os jovens do sexo masculino aprenderam a programar por meio da experimentação e aos poucos se tornaram uma maioria consistente nos bancos das universidades.
A mais recente a subir ao topo
Anunciada como diretora-geral neste janeiro, Katia trabalha há 25 anos em setores relacionados à tecnologia da informação. Antes da IBM, onde ingressou em 2010, teve passagens por grandes nomes do ramo como Oracle, SAP e Siebel Systems. Katia Vaskys, gerente-geral da IBM
Apesar dos avanços dos últimos anos, a masculinização das salas de aula persiste até os dias atuais — estudos mostram que os homens continuam a ser maioria nas disciplinas ligadas ao setor tecnológico. A nova ordem que se instala está atrelada a mulheres cada vez mais interessadas em ocupar posições que, registre-se, podem ser preenchidas por qualquer gênero. “As minhas alunas nem pensam se deveriam ou não ocupar cargos ligados à computação”, diz a professora Pollyana, do Mackenzie. Ela define a questão: “O lugar da mulher é onde ela quiser”.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722