Às vésperas do comando do país se transferir da direita para a esquerda, os rumos da economia no Brasil voltam a girar em torno de uma questão que já havia provocado polêmica na primeira vitória do PT, há vinte anos. Na área econômica, cada declaração e cada movimento da transição do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva indicam que ele vai trilhar caminhos equivocados na definição do papel do Estado nos próximos anos. Exemplo disso são os reiterados discursos dele contra privatizações. O petista usa sempre o argumento que merece confiança por ter saído do Palácio do Planalto lá atrás com aprovação recorde, bons números de crescimento e contas públicas em ordem. Além disso, ressalta que foi sua proposta de governo que acabou sendo vitoriosa no pleito e, portanto, conta com o apoio da maioria dos brasileiros (embora a tal proposta nunca tenha sido suficientemente detalhada na campanha).
Apesar do triunfo de Lula nas eleições, a verdade é que esse viés antiliberal do futuro governo está longe de ser uma unanimidade entre a população. Pesquisa exclusiva realizada pelo Instituto Atlas Intel, a pedido de VEJA, mostra claramente o fenômeno. Segundo o trabalho em questão, a maioria das pessoas espera e deseja que o Estado intervenha em áreas essenciais — só que de uma forma mais eficiente e sem o mesmo peso atual da máquina pública. No plano geral dos princípios que regem a economia, a tendência é decididamente a favor do liberalismo e contra a gastança ilimitada. “Nas últimas décadas, o Estado brasileiro cresceu sem ser capaz de suprir as carências da população. Perguntar por que isso ocorre é fundamental, mas ainda debatemos o tema como se estivéssemos no século XIX”, critica Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central.
Por enquanto, esse tipo de discussão está fora do radar do novo governo. As prioridades são outras. Desde que foi reconduzido pelas urnas ao Planalto, Lula tem deixado claro que pretende reeditar a política de investimentos públicos em infraestrutura para gerar emprego e retomar a atividade econômica — expediente que, sem a contrapartida de recursos garantidos, contribuiu para o desequilíbrio das contas na última gestão petista, a de Dilma Rousseff. Agora, em troca da garantia do Bolsa Família, Lula pressiona pela aprovação de uma PEC, em andamento no Congresso, que autoriza bilhões de reais do Orçamento a ficarem fora da conta. Não está claro de onde sairá o dinheiro para cobrir o buraco.
Ao manifestar indiferença em relação às expectativas do setor financeiro, Lula desagrada diretamente a um punhado de engravatados, mas, como mostra a pesquisa da Atlas Intel, boa parte da população também faz restrições a gastos sem lastro e ao excesso de medidas intervencionistas. O instituto fez doze perguntas que refletem as principais discussões em torno dos rumos da economia para 1 600 pessoas de todas as regiões do país. Em uma escala de 0 a 100, em que o número mais alto significa maior adesão aos preceitos do liberalismo econômico, o índice geral ficou em 48 pontos, praticamente a metade do espectro. No entanto, no que diz respeito à macroeconomia, ou seja, à definição do projeto como um todo, o patamar anti-intervencionismo subiu para 69 pontos no item teto de gastos (veja o quadro). “A população não está disposta a sacrificar seu futuro se isso gerar endividamento”, diz Andrei Roman, CEO da Atlas Intel.
A maioria dos entrevistados afirmou ainda considerar viável reduzir o tamanho do Estado sem comprometer a qualidade dos serviços prestados (62 pontos) e se colocou mais favorável a um enxugamento da máquina pública do que a aumentos de impostos (70). Mas nenhum tópico da pesquisa amealhou tanta adesão popular ao liberalismo quanto a necessidade de maior incentivo à livre concorrência e ao empreendedorismo. Nesse quesito, o índice cravou 83 pontos e foi um dos poucos a unir a opinião de ricos e pobres. O anseio faz sentido para a multidão de candidatos a empreender — levantamento da Central Única de Favelas (Cufa) detectou que 76% dos moradores das comunidades carentes têm, ou querem ter, o próprio negócio. Eles penam com a burocracia e o execrável cipoal tributário existentes no Brasil. Renata Barbosa, 48 anos, moradora de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, vive de fazer bolos e salgados em casa para festas e enfrenta as agruras da mão pesada do Estado. “O que pago de imposto não retorna em nada para mim”, desabafa ela, que chegou a abrir uma loja, mas teve de baixar as portas por causa da pandemia. “O governo tem de deixar as pessoas livres para empreender.”
Os obstáculos à maior liberdade de mercado no Brasil passam por questões históricas e culturais. Herdeiro de uma tradição portuguesa católica e colonialista, o país nunca deixou de ver o lucro como pecado e o Estado como provedor. “A sociedade brasileira nutre um certo sentimento anticapitalista. Faltam lideranças para fazer o liberalismo avançar no país”, diz Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e colunista de VEJA. Quem tem feito esse papel, especialmente no meio da população de baixa renda, são os pastores evangélicos. Herdeiras das reformas do século XVI, que estabeleceram uma ética protestante voltada para o trabalho e a poupança, as religiões neopentecostais, com todas as ressalvas que se possa fazer à sua atuação, se tornaram uma força motriz do liberalismo no país. “A teologia da prosperidade prega que ninguém nasceu para ser pobre. Trabalhar e enriquecer é um jeito de atingir a salvação oferecida por Cristo em vida, e não após a morte”, explica Lívia Reis, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser).
Típica da dicotomia de valores predominante no Brasil, a adesão ao liberalismo começa a esmorecer quando os entrevistados são colocados diante de questões que afetam diretamente sua vida. Indagada sobre o papel da Petrobras na economia, a maioria defendeu que a empresa use seu lucro para baixar e subsidiar o custo dos combustíveis — uma clara interferência indevida adotada tanto no governo Dilma Rousseff, que comprometeu o caixa e derrubou o valor das ações negociadas no exterior, quanto no de Bolsonaro, que, de olho nas eleições, cortou impostos para baixar preços e desequilibrou as contas públicas estaduais. “A percepção geral de um ganho imediato no dia a dia explica a tentação dos políticos em adotar medidas populistas”, observa Roman.
Na forma de discussão rasteira que se costuma fazer no Brasil, muitas vezes os interesses sociais do governo e os da iniciativa privada parecem coisas excludentes. “Não vou governar para a Faria Lima”, disse recentemente Lula, com o objetivo de reforçar que fará uma gestão para os pobres, sem levar muito em conta a opinião do mercado financeiro. Mas, apesar da aparente contradição, a doutrina do liberalismo moderno comporta a possibilidade de os governos agirem para reduzir a desigualdade. “Os liberais atuais concordam que é preciso que o Estado atue como um juiz do jogo, estabelecendo regras para que ele seja justo, impedindo a formação de monopólios e garantindo a competitividade. O que não faz sentido é o governo entrar em campo para marcar gol”, compara Alexandra Godoi, professora de economia da FGV. “Não há como abrir mão de financiar saúde, educação e uma rede de proteção social, mas é preciso que tudo isso seja bem pensado e administrado”, reforça Arminio Fraga.
Se no campo da economia a discussão é permanente e oscila como um pêndulo, intercalando momentos de maior e menor interferência estatal, na esfera social os valores liberais passaram a moldar o comportamento humano. “Características como liderança, proatividade, criatividade, capacidade de gestão, visão empreendedora e meritocracia foram talhadas dentro do ambiente de livre mercado e são normativas na sociedade brasileira hoje em dia”, afirma Daniel Pereira Andrade, professor de sociologia da FGV. Imbuído desse espírito, Rafael Hatab, 31 anos, abriu quatro padarias, está a caminho de se tornar uma franquia e tem potencial para avançar mais ainda. “Se não enfrentasse tanta burocracia, poderia melhorar a vida dos meus 120 funcionários”, diz.
Preconizado por Adam Smith (1723-1790) no livro A Riqueza das Nações, o liberalismo econômico parte da premissa de que o progresso é mais certo quanto maior for a liberdade do mercado e do indivíduo. “Ao defender seu próprio interesse, ele promove o da sociedade”, ensinou o pensador escocês, disseminando a teoria que serviu de base para o enriquecimento da Europa e dos Estados Unidos. Neste momento em que o governo eleito dá sinais de que está disposto a ceder à tentação de interferir na economia para fazer o bolo crescer, é bom que não perca de vista a receita de Adam Smith, que é aprovada, como mostra a pesquisa da Atlas, pela maioria dos brasileiros.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819