Marcação cerrada: como a biometria aumentou as prisões em estádios de futebol
Procurados por tráfico de drogas, homicídio, roubo e até dívida de pensão alimentícia entram na mira do sistema

Em março de 2020, a Polícia Federal interceptou um avião que transportava ao menos 400 quilos de cocaína durante pouso em uma pista clandestina no interior de Mato Grosso. Um suspeito saltou da aeronave, ateou fogo ao veículo e à droga e fugiu pela mata. Três anos depois, foi enfim capturado, mas em um contexto bem diferente: ao tentar entrar no Allianz Parque, estádio do Palmeiras, em São Paulo, para ver um jogo do time de coração. A prisão ocorreu graças ao sistema de reconhecimento facial instalado desde 2023 nas catracas da arena, uma das pioneiras do país no uso da biometria facial e no compartilhamento de dados com a polícia.
O traficante não foi o único torcedor com débito na Justiça a ser preso nos últimos tempos antes de um jogo de futebol. Em quarenta partidas desde que o Allianz Parque integrou seu sistema ao do programa Muralha Paulista, do governo estadual, mais de 200 procurados acabaram detidos por homicídio, roubo, peculato, pedofilia e até dívida de pensão alimentícia. Outras 130 pessoas foram pegas em flagrante descumprindo medidas cautelares e houve a identificação de 253 desaparecidos.

O estádio do Palmeiras não é o único a fazer a conexão entre biometria no ingresso e o banco de dados da polícia. A Neo Química Arena, do rival Corinthians, iniciou o monitoramento com a polícia no dia 16 de agosto. Em três jogos, nove foram presos por débito de pensão alimentícia, estelionato, receptação e roubo. Nos primeiros dias da implantação, chegou a haver queda de público, atribuída às dificuldades do sistema, mas também ao receio de entrar na mira da polícia. A Arena Castelão, em Fortaleza, prendeu onze procurados pela Justiça entre março e julho. Na Arena Pantanal, em Cuiabá, 24 foragidos já foram capturados.
O uso de biometria já chegou a dezoito dos vinte estádios da Série A do Brasileiro. A medida é obrigatória desde junho para locais com mais de 20 000 lugares, uma exigência da Lei Geral do Esporte, de 2023, que deu dois anos para a adaptação. A parceria com a polícia, porém, não é obrigatória. A Fonte Nova, em Salvador, por exemplo, faz questão de informar aos torcedores que “as imagens captadas são utilizadas, exclusivamente, para a validação do acesso ao estádio”. O principal objetivo da medida, aliás, sempre foi evitar a atuação de cambistas e a falsificação de ingressos. “Em dia de jogo, sem exagero, dava para encontrar uma centena de cambistas atuando. Hoje esse número caiu 99%”, relata Oswaldo Basile, que atua na auditoria interna do Palmeiras.
O método exige que o torcedor forneça dados pessoais e faça o cadastramento do rosto para comprar o ingresso on-line. Caso haja pendências judiciais, há um alerta digital para a polícia, que efetua a prisão no momento em que a pessoa tenta passar pela catraca. Há exemplos de quem, por dever à Justiça, utilizou CPF de mortos ou de parentes para comprar bilhetes, o que configura crime e rende até dois anos de detenção.

O uso cada vez maior do reconhecimento facial não é exclusividade dos estádios de futebol. A principal empresa do setor, a Bepass, que tem contrato com oito grandes clubes e três arenas, já colheu a biometria de 5 milhões de usuários, que acompanharam 350 jogos de futebol e outros 43 eventos, como a Festa do Peão de Barretos. Para o professor de direito penal Fernando Capano, a vigilância nesses locais não pode ser vista como uma ação fragmentada, mas parte da política geral de segurança e que, como tal, exige integração. “O torcedor tem direito a um ambiente seguro, e isso só se concretiza quando o Estado e os entes privados assumem, juntos, o compromisso de agir com eficiência e transparência”, diz. A questão, no entanto, provoca polêmica. A Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), do governo federal, tem desde janeiro um processo instaurado contra 23 times das séries A, B e C do Brasileiro para investigar o tratamento de dados pessoais sensíveis. “Apenas seis clubes de futebol realizaram as mudanças necessárias nas páginas de venda de ingressos para que os torcedores pudessem ter acesso facilitado a informações simples e claras sobre o uso de seus dados pessoais”, informa em nota a agência.
A expansão, no entanto, parece um movimento inevitável. Outros clubes, como São Paulo e Santos, além de responsáveis por estádios do Rio de Janeiro e Belo Horizonte, discutem a integração com a polícia. Além disso, desde o dia 1º, o Conselho Nacional de Justiça passou a incluir no Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões as decisões que proíbem o acesso de determinadas pessoas aos estádios — com isso, se um torcedor for banido em uma praça, não poderá ver jogos em outra. A multiplicação da ferramenta tende a formar um grande cinturão de vigilância eletrônica, garantindo por tabela o sossego de quem frequenta estádios de futebol. Uma verdadeira bola dentro da troca de passes entre tecnologia e segurança.
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2025, edição nº 2963