Massacre inexplicável
Recluso e com sinais de transtorno mental, o atirador de Campinas chegou a falar em dar fim à própria vida antes de atingir oito pessoas e matar cinco
Euler Fernando Grandolpho, de 49 anos, não tinha antecedentes criminais, vivia com o pai, Eder, de 80, em uma casa de três andares de um condomínio de alto padrão em Valinhos, no interior de São Paulo, e não possuía emprego fixo fazia pelo menos quatro anos, quando pediu exoneração do cargo que ocupava como auxiliar de promotoria no Ministério Público do Estado de São Paulo. O pai, funcionário aposentado do Banco do Brasil, cobria as despesas da casa. A mãe, Marlene, morreu dez anos atrás. A aparente normalidade que cercava a vida da família Grandolpho foi interrompida pelos vinte disparos feitos por Euler às 13h15 da terça-feira 11, na Catedral Metropolitana de Campinas. Saldo: cinco mortos, além do próprio atirador, que se suicidou com um tiro na cabeça (veja o quadro abaixo).
Os porteiros do condomínio dos Grandolpho, localizado a 10 quilômetros de Campinas, não viram anormalidade alguma quando Euler passou pela portaria vestindo bermuda jeans, camiseta azul e óculos escuros, carregando uma mochila. Dentro dela — mais tarde seria descoberto — estavam as duas armas levadas para o local do crime com cerca de cinquenta projéteis — o que reforça uma das poucas certezas dos investigadores até agora, a de que o crime foi premeditado e que a intenção, pela quantidade de munição, era matar em massa.
Durante as buscas na casa de Euler, foram encontrados dois gravadores de voz, dois computadores, um celular, um tablet e várias anotações desconexas que demonstram que o atirador se sentia perseguido e acreditava ter seus aparelhos eletrônicos hackeados. Em uma delas, faz menção ao que a polícia acredita ser dois massacres ocorridos no Brasil: um em uma casa de shows em Fortaleza, no Ceará, em janeiro de 2018, e o outro no Realengo, no Rio, em abril de 2011, quando um homem tirou a vida de doze crianças em uma escola e se matou em seguida. Diz a nota, em português trôpego: “Passei com o meu cão em frente uma construção ao lado de uma casa q. os moradores têm uma veterinária e uma delas gritou com ‘as paredes’: ‘e aí Ceará’, sobre o massacre ocorrido dias atrás. Ok. Hj, 31/01/18 passei por lá e falei alto com o celular desligado na orelha E AÍ REALENGO”.
Se as motivações do crime ainda são nebulosas, as informações levantadas pelos investigadores e colhidas junto a familiares começam a dar forma ao perfil do atirador. Euler nunca se casou, não teve filhos e sua vida profissional era errática. Fez curso técnico de mecânica no colégio da Universidade de Campinas, mas formou-se em publicidade. Abriu uma oficina mecânica e uma loja de peças para motocicletas, mas os negócios não prosperaram e ele passou a estudar para concursos públicos. Foi aprovado em 2009 e convocado em 2012.
Nos últimos anos, Euler vinha demonstrando dificuldades de relacionamento, segundo familiares ouvidos por VEJA. Ficava a maior parte do tempo dentro do quarto, cômodo que ele mesmo limpava, pois não permitia que ninguém entrasse — nem o pai nem a irmã, que mora no mesmo condomínio. A relação entre pai e filho também não era pacífica. Euler criticava a dedicação religiosa do pai, que era frequentador assíduo de uma paróquia em Campinas. Ministro de eucaristia, Eder, além de ajudar nas missas, cuidava da contabilidade e da organização de festas da igreja. Segundo um familiar, nos últimos anos Euler também começou a apresentar “surtos de agressividade” — e discussões banais passaram a evoluir para brigas acaloradas, em que se mostrava violento até mesmo com o pai. Num desses episódios, Euler teria externado o desejo de se matar. À polícia, o pai e a irmã reconheceram que temiam que ele cometesse suicídio. No velório, ocorrido em Campinas e acompanhado por cerca de quarenta pessoas, uma tia relatou ter ouvido dele que não tinha mais vontade de viver depois da perda da mãe e do irmão, falecido há quase dois anos em decorrência de leucemia.
Apesar dos aparentes sinais de distúrbio comportamental, a polícia não conseguiu encontrar evidências de que Euler tomava medicamentos ou passava por qualquer tipo de tratamento psiquiátrico. A única informação colhida junto a familiares que levanta suspeita de transtornos é a de que ele esteve pelo menos uma vez no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Campinas, entidade mantida pelo governo do estado para tratamento de saúde mental.
Os familiares de Euler não quiseram dar entrevistas à imprensa e, até o fim da cerimônia fúnebre, na quarta-feira 12, não haviam prestado depoimento formal à polícia. O padre Amauri Thomazzi, que se desvestia dos paramentos usados na missa em uma sala atrás do altar quando os tiros começaram, publicou um vídeo nas redes sociais minutos depois do crime pedindo orações pelas vítimas e pelo atirador. “A vocês, amigos, eu peço apenas que rezem pela pessoa. Ele se matou depois da situação, ele atirou nas pessoas, foram mais de vinte tiros aqui dentro e depois ele se matou.”
Toda a ação, da entrada de Euler na igreja ao desfecho trágico, não durou mais de cinco minutos, tempo suficiente para que oito pessoas fossem atingidas, em sua maioria idosas. Quatro vítimas morreram no local, antes de o socorro chegar, além do próprio atirador. Heleno Severo Alves, de 84 anos, o mais velho dos atingidos, foi socorrido, mas não resistiu aos ferimentos e faleceu no dia seguinte. Outros três baleados estão fora de perigo. Uma das sobreviventes é Jandira Prado Monteiro, de 65 anos. Ela havia combinado de encontrar o filho, Sidnei Vitor Monteiro, de 39 anos, na porta da catedral. De lá, seguiriam para o dentista. Moradora de Hortolândia, cidade vizinha de Campinas, Jandira decidiu visitar a catedral e rezar um pouco antes da consulta. Mãe e filho entraram momentos depois de Euler e sentaram-se atrás dele. Quando o atirador iniciou o massacre, os dois foram os primeiros atingidos. Jandira foi baleada na mão direita e na clavícula, mas conseguiu se levantar e correr para fora da igreja. O filho não teve a mesma sorte. Morreu no local.
Ataques em massa como o de Campinas, o de Goiânia, em que um menino de 13 anos abriu fogo contra colegas na escola, em 2017, ou mesmo o de Realengo, em 2011, mimetizam prática criminosa que tem se tornado frequente em várias partes do mundo nas últimas décadas — por motivações que vão desde o terrorismo até a mera vingança. Nesse tipo de atentado, os atiradores agem sozinhos e escolhem o local com o objetivo de fazer o maior número possível de vítimas. Escolas, templos religiosos e casas noturnas estão entre os alvos preferenciais, segundo José Vicente da Silva, coronel da reserva da PM de São Paulo e mestre em psicologia social pela USP. Foi o que aconteceu em outubro do ano passado, durante um show em Las Vegas, quando um americano disparou contra a plateia e matou 58 pessoas, o maior massacre da história dos Estados Unidos, um campeão mundial na categoria. Autores de assassinatos em massa costumam ter em comum o sentimento de raiva potencializado por paranoias — que podem ser provocadas por doenças mentais, abuso de drogas e transtornos de personalidade. “É um crime de difícil prevenção”, afirma Silva. Em qualquer um desses casos, diz ele, o assassino pode nutrir pensamentos homicidas por anos, até explodir. E os sinais deixados pelo caminho nem sempre são percebidos em sua gravidade.
O passo a passo do terror
Durou menos de cinco minutos. Euler Grandolpho chegou à Catedral de Campinas por volta das 13h15 e sentou-se em um banco. A missa do meio-dia havia acabado e restavam poucos fiéis. O atirador se levantou e, sacando uma pistola automática, descarregou mais de vinte tiros aleatoriamente. Acertou oito pessoas, matando cinco. Euler ainda tinha munição para quase trinta disparos, mas foi detido pela Polícia Militar, que transitava em frente ao local e ouviu o barulho dos tiros. O atirador foi atingido na costela e, caído no chão, pôs fim à própria vida disparando contra sua cabeça. Às 13h20, só restavam gritos e corpos estendidos no chão.
1) Euler Grandolpho entra na Catedral de Campinas e senta-se na sexta fileira (a partir do fundo). Em seguida, duas pessoas chegam ao local e acomodam-se dois bancos atrás.
2) O atirador se levanta, mira os fiéis recém-chegados e dispara. Em seguida, ao avistar um grupo tentando escapar, atira novamente, para depois andar em direção ao altar disparando a esmo.
3) Policiais que estavam do lado de fora da igreja ouvem os disparos e veem fiéis fugindo em pânico. Eles entram na catedral e trocam tiros com Euler, que havia recarregado sua arma.
4) Euler tenta se afastar dos policiais correndo em direção ao altar, mas é atingido com um tiro na costela. Antes de ser detido, dispara contra sua cabeça e morre com a arma na mão.
Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613