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Mentira que polícia engoliu atrasa investigação sobre morte de Marielle

VEJA teve acesso ao inquérito que apurou por que o caso se arrasta

Por Leandro Resende
Atualizado em 4 jun 2024, 15h47 - Publicado em 13 set 2019, 06h30

Depois de um ano e meio debruçada sobre as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco, metralhada com quatro tiros na cabeça no Centro do Rio de Janeiro, a polícia ainda não tem resposta para duas questões fundamentais: quem arquitetou o crime e por quê. Em novembro de 2018, quando lá se iam oito meses sem solução à vista, a Polícia Federal decidiu apurar o que fazia o caso se arrastar tanto. Suspeitava que uma quadrilha poderia estar atravancando os trabalhos da Polícia Civil. E abriu o inquérito número 477/2018-15 para esclarecer o que se passava. VEJA teve acesso ao relatório final, de 23 de maio de 2019. Seu conteúdo é estarrecedor. A PF concluiu que não foi uma quadrilha que emperrou o desenrolar da investigação, mas um casal de trapaceiros — um miliciano e sua namorada com interesses próprios — que ludibriou a Polícia Civil com um enredo duro de engolir. E, sim, a polícia o engoliu e ficou meses enredada na trama fantasiosa.

A história criada pelo policial militar e miliciano nas horas livres Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha, e pela advogada Camila Nogueira está contada em um passo a passo de fazer corar de tão elementar. Por suas atividades na bandidagem, Ferreirinha colecionava inimigos — e rivalidades no mundo das milícias, em que atuava, custam a vida. Pois bem: ele tinha se estranhado tempos antes com seu patrão no crime, Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, o chefe no bairro do qual herdou o codinome. E sabia que estava em uma lista de pessoas marcadas para morrer. Apavorado, Ferreirinha pediu socorro à namorada, que, exercendo a advocacia, poderia entregar à polícia material que incriminasse Orlando. O objetivo era vê-­lo transferido para uma cadeia bem longe do Rio — e salvar a pele.

MAIRELLE-FRANCO-VEREADORA-ASSASSINATO-2018
EMBOSCADA – Carro metralhado: a vereadora morreu na hora (MARCOS ARCOVERDE/Estadão Conteúdo)

Um amigo de Camila conhecia um delegado da PF, Hélio Khristian, e foi assim que ela foi parar na sede da Superintendência, em 18 de abril de 2018, um mês depois do assassinato de Marielle. Mas, naquela ocasião, esse não era o assunto entre a advogada e o delegado. Camila estava lá para entregar um dossiê que, segundo alardeava, continha informações valiosas contra Orlando, bandido visado por seu raio de ação nas bandas da Zona Oeste. Aí veio um revés: Khristian não lhe deu atenção por não ver ali crime de atribuição federal. Camila e Ferreirinha não sossegaram. No dia seguinte, a advogada voltou a encontrar o delegado, dessa vez com uma história mirabolante.

Das 14h10 às 15h20 daquele 19 de abril, Camila relatou a Khristian tudo o que dizia saber por intermédio do namorado sobre o assassinato de Marielle e de seu motorista, Anderson Gomes. Contou que o crime fora engendrado por Orlando em parceria com o vereador Marcello Siciliano, do PHS. De frente para o delegado, ela disparava mensagens no Whats­App para Ferreirinha, lapidando o enredo em tempo real à medida que Khristian ia aprofundando as questões (veja trechos ao final desta reportagem). “Pq a Marielle seria alvo dele (Orlando)?”, indaga Camila ao namorado. E ele: “Perseguições à milícia”. Camila parece apreensiva, emparedada pelo delegado: “Ele tá dizendo que não, que ela (Marielle) não tinha registro desse envolvimento”. No dia 4 de maio, Camila retorna ao delegado com mais detalhes, e, nessa visita, a conversa é acompanhada por policiais da Delegacia de Homicídios, que, ainda sem pistas, passaram a ter como principais alvos Orlando e o vereador Siciliano. O motivo para o assassinato estaria no fato de Marielle ter atuado na área controlada pelo miliciano, onde supostamente Siciliano concentraria votos — e assim teria atrapalhado os dois, seja pelo lado dos negócios, seja por fincar os pés em um reduto que não era seu.

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Dois meses depois, Camila e Ferreirinha comemoraram. Orlando, detido desde 2017 em um presídio no Rio de onde seguia dando as cartas, foi transferido para a penitenciária federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Enquanto isso, a Polícia Civil perdia tempo com a versão sacada da cartola pela dupla trambiqueira, que chegou a ponto de treinar uma testemunha, outro miliciano, para repetir sua versão mentirosa. Algumas fragilidades muito básicas na investigação espantaram a PF, que registrou tudo em seu inquérito. Exemplos:

ƒ Os investigadores não analisaram mapas eleitorais para saber se Siciliano e Marielle disputavam o mesmo terreno. Resposta: não disputavam.

ƒ Também não verificaram se Siciliano tinha boa votação nos domínios de Orlando — o que indicaria proximidade entre o político e o miliciano. Resposta: o desempenho de Siciliano foi pífio por lá, 475 votos. “Um dos poucos dados noticiados e passíveis de ser aferidos tecnicamente de imediato não se sustentou”, critica o relatório da PF.

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ADEUS, RIO? – Raquel Dodge: empenho para transferir o inquérito para Brasília (Pedro Ladeira/Folhapress)

Em depoimento anexado ao inquérito, Orlando Curicica relata ter sofrido pressões da Delegacia de Homicídios para assumir o crime. A PF diz ainda que o policial encarregado de comandar as investigações em campo, Marco Antonio Pinto, “orientou” e “protegeu” Ferreirinha. Um dia, em viagem a São Paulo, o miliciano soube que a polícia batia à porta de sua casa para uma operação de busca e apreensão e enviou mensagem a Marco, que aconselhou: melhor não voltar para casa. Ele também quebrou o galho de Ferreirinha ao ajudá-lo a trocar de batalhão. “A gente tem uma afinidade”, ressaltou Marco, garantindo ter tratado da mudança com o chefe da Polícia Civil.

A investigação da PF acabou por fechar o círculo em torno de Camila e Ferreirinha, que, indiciados pelo crime de obstrução de Justiça, confessaram a lorota. Com os respectivos celulares apreendidos, cessou a profícua troca de mensagens que durou quase um ano e escancarou-se a desfaçatez com que eles pregaram sua mentira. Ferreirinha está preso há quatro meses por sua atuação na milícia. Ao longo desse tempo todo, o máximo que a Polícia Civil conseguiu foi prender o atirador e o motorista do carro que o conduziu à cena do crime. No rol dos suspeitos, consta o nome do ex-deputado estadual Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado. Ele teria encomendado a morte de Marielle para se vingar do deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL, muito amigo da vereadora.

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MANDANTE – Brazão, ex-conselheiro do TCE: o principal suspeito, segundo a PF (MAÌRA COELHO/Estadão Conteúdo)

Segundo essa linha de apuração, Brazão, que era do MDB, agiu em prol de políticos de seu partido prejudicados pelo fato de Freixo ter conseguido na Justiça lhes tirar o foro especial. O inquérito da PF, que a Polícia Civil afirma nunca ter visto, também cita Brazão como “o principal suspeito de ser o autor intelectual do crime”, mas não descarta outras possibilidades. A VEJA, o conselheiro do TCE diz: “Não tenho nada a ver com isso. Não sei a quem interessa insistir nesse absurdo”. A iniciativa de investigar a morosidade da polícia veio da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, de saída do posto na terça-feira 17. Nos últimos tempos, Dodge vinha se empenhando para retirar das autoridades fluminenses o caso pelo qual todos brigam, mas que ninguém consegue resolver.

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(./.)

Publicado em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652

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