Início de ano é sempre assim: a gente faz promessas, ambiciona novidades. Como o ano só começa realmente depois do Carnaval, costumo aguardar até lá. Mas aí já é tarde: o ano ganhou seu ritmo, e eu deixo as mudanças para o futuro. Em 2019 pensei no que realmente desejaria para este 2020. Há uma palavra que não me sai da cabeça: segurança. É claro que o país tem problemas de todo tipo. Mas a segurança toca no meu cotidiano diretamente. Vivo pensando na imagem da rã colocada na água fria. Alguém bota a panela para esquentar lentamente, e a saltitante não percebe até estar cozida. Eu me admiro ao ver as pessoas convivendo com a violência como se fosse absolutamente normal. Uma amiga sai sempre com dois celulares. Um velho e um bom, escondido. O mais antigo é para, no caso de assalto, entregar ao ladrão. Já ouvi um conhecido dizer que o meliante foi “legal”, pois o deixou ficar com os documentos. Ou seja: o sujeito assalta, ameaça, mas é “legal”? Recentemente, um amigo fez aniversário. Tínhamos um evento, mas queríamos nos reunir depois das 10 da noite. Foi difícil achar um restaurante: a maioria está fechando mais cedo. Em São Paulo, no centro, as mulheres andam agarradas às bolsas. O pior, porém, repito, é nossa atitude passiva. Nós nos acostumamos ao absurdo. Já ouvi uma pessoa contar, também no Rio, que estava parada em um sinal e viu o bandido render o motorista do carro da frente com revólver. Obrigou-o a abrir a porta, puxou-o para fora, sentou-se ao volante e partiu. Mas esse tipo de história já não provoca nem gritos de admiração.
“Eu me admiro ao ver as pessoas convivendo com a violência como se fosse normal”
Fiquei admirado, sim, com algo que me aconteceu. Em Portugal. Estava hospedado no apartamento de um amigo. Ele mora perto de um lindo parque, mas sua rua é ponto tradicional de prostitutas, a maior parte de meia-idade. Algumas estão lá há vinte anos. Cheguei às 2 da manhã. Tinha a chave do prédio. (Não costuma haver porteiro em Lisboa.) Fui abrir, emperrou. Três mulheres que estavam próximas ofereceram ajuda. Aceitei. Elas vieram, puxaram a porta, viraram a chave. Abriram. Agradeci e entrei, todos se desejando boa-noite. Com todo o respeito. Quando já estava no apartamento, caí em mim. No Brasil, sozinho na rua, com a chave do prédio, quem me ajudaria? Seria bem mais provável que aparecesse alguém para me depenar. Essa sensação de segurança tornou-se um atrativo único. Há quem queira se mudar para a Europa porque é mais segura. Uma amiga já mandou os filhos adolescentes para o interior de Portugal, para evitar a violência carioca. (Dou muitos exemplos do Rio, onde fico mais. Mas o que digo vale para o Brasil todo.) O medo virou a norma.
Há alguns anos, eu saía do Leblon e andava até o Arpoador pela praia. É uma boa e saudável distância. Não tenho mais coragem. Quero voltar a andar pelo calçadão sem medo. Se caminhar, realizarei meu segundo desejo de Ano-Novo: perder a barriga. Mas quando? A falta de segurança mudou minha vida. Sem dúvida, continuarei barrigudo.
Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668