Criada no Rio de Janeiro em 1929, a quase centenária Lojas Americanas se tornou uma das maiores e mais conhecidas marcas do varejo brasileiro. Comandada a partir da década de 80 pelos empresários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, três dos mais conhecidos bilionários do país, a companhia deixou perplexos o mercado financeiro, os acionistas (em especial os pequenos) e o meio empresarial ao anunciar “inconsistências contáveis” de mais de 20 bilhões reais — uma fraude, na verdade, que desembocou em um pedido de recuperação judicial.
Enquanto a Americanas buscava proteção judicial contra cobranças de mais de 43 bilhões de reais, inquéritos foram abertos na Polícia Federal e no Ministério Público para apurar, como é necessário, as responsabilidades cíveis e criminais. Em outra frente, o Congresso achou que seria uma boa gastar energia no assunto e criou uma CPI. No pedido, o deputado André Fufuca (PP-MA), hoje ministro do Esporte, diz que o objetivo era “zelar para que casos como o da Americanas sejam escrutinados com a devida responsabilidade”. Não foi o que ocorreu. Após quatro meses, a comissão termina de forma melancólica, sem elucidar os meandros da fraude, sem ouvir nenhum nome relevante da companhia e sem indiciar ninguém pelo rombo.
A trajetória errática da CPI teve a contribuição decisiva da disposição em bloco dos diretores e ex-diretores da companhia de não falarem. Sete executivos foram convocados e todos conseguiram decisões judiciais que lhes permitiam faltar ao depoimento ou ficar em silêncio. O único ouvido, mas como convidado, foi Sergio Rial, que era o CEO da empresa quando o rombo veio a público — foi ele próprio quem denunciou o problema e, em seguida, renunciou ao cargo. Outro ex-CEO, Miguel Gutierrez, que dirigiu a companhia por vinte anos, mandou apenas uma carta, no início de setembro, na qual afirmou que os três bilionários sabiam da fraude. Nem com isso, porém, o presidente da CPI, Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE) se animou a pautar a convocação do trio.
A confirmação do vexame veio na quarta-feira 27, com o relatório de Carlos Chiodini (MDB-SC). No documento, ele até reconhece o envolvimento criminoso de pessoas que integram ou fizeram parte do corpo diretivo da Americanas, mas afirma não ser possível atribuir autorias que pudessem embasar uma citação individual das condutas, sobretudo pela falta de tempo (veja o quadro). “É claro que não conseguiram apontar os responsáveis, pois o presidente e o relator não convocaram os verdadeiros responsáveis pelo rombo”, afirma Alfredo Cavalcante (PT-SP), que elaborou um relatório paralelo, elencando culpas e culpados, mas não conseguiu votos suficientes para levar sua papelada à apreciação dos pares. “É o relatório da blindagem. O Brasil passou vergonha com essa CPI”, esbravejou João Carlos Bacelar (PL-BA) no plenário da Casa.
Os responsáveis pelo desfecho têm, claro, uma justificativa para o vexame. O presidente da CPI diz, por exemplo, que a ideia da maioria dos deputados “foi tentar preservar a empresa, do ponto de vista do CNPJ”, e sugerir soluções legislativas para punir futuramente pessoas e companhias que praticam fraudes. Ele se refere a quatro projetos de lei que visam a proporcionar mais recursos à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) — entidade fiscalizadora do mercado —, além de aprimorar o sistema de vigilância patrimonial e criar uma tipificação penal de infidelidade patrimonial. Tudo isso, no entanto, poderia ser feito por meio do mero trabalho legislativo, sem a necessidade de uma CPI, que consumiu tempo, dinheiro e energia do Congresso. “As CPIs têm papel do ponto de vista propositivo e não servem para transformar oitivas em tribunais de inquisição”, defende-se Gustinho Ribeiro.
O desfecho não foi o único a espalhar frustração no Congresso. Outras três comissões encerram os seus trabalhos com resultados muito aquém da expectativa. A CPI do MST, por exemplo, a quinta comissão a investigar o movimento desde 2003, fez tanto alarde quanto as quatro anteriores e acabou da mesma forma — pedidos de indiciamento de integrantes do grupo sem-terra (nenhuma grande liderança), propostas legislativas de blindagem do agronegócio (que nunca vingaram em outras ocasiões) e nenhum avanço sobre a questão agrária. Pior: o relatório de Ricardo Salles (PL-SP), eivado de proselitismos ideológicos, nem foi votado.
Outra comissão que surfou no noticiário e morreu na praia, a CPI da Manipulação do Futebol também encerrou suas atividades sem votar o relatório de Felipe Carreras (PSB-PE) ou sequer ouvir os acusados de repassar valores estratosféricos a jogadores no maior esquema de máfia esportiva até agora revelado no país. Uma das oitivas mais aguardadas era a de Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, mas ele escapou duas vezes do depoimento. Rodrigues se livrou, ainda, de comparecer à CPI das Pirâmides Financeiras, que deixou como “legado” a participação de Ronaldinho Gaúcho —o astro do futebol negou relação com uma corretora de criptomoedas acusada de fraudar clientes — e a quebra de sigilo bancários dos atores Cauã Reymond e Tatá Werneck, que fizeram publicidade para a corretora Atlas Quantum, investigada por estelionato de 2 bilhões de reais em bitcoins. No final, a CPI tentou pegar carona em um assunto da moda, a empresa 123milhas, que lesou milhares de clientes ao suspender a emissão de passagens aéreas promocionais e entrar com pedido de recuperação judicial na ordem de 2,3 bilhões de reais.
As comissões parlamentares de inquérito têm um longo histórico de irrelevâncias, sucessos e fracassos. Prevista na Constituição desde 1934, elas foram banidas em períodos autoritários, como o Estado Novo e a ditadura militar, e ganharam força após a Carta de 1988, que lhe concedeu “poderes de investigação próprios de autoridades judiciais”. A CPMI dos Correios foi o passo inicial para abrir a caixa de Pandora que viria a ser o mensalão — ela foi instaurada em 2005 para investigar, inicialmente, o pagamento de propina a um funcionário da estatal ligado ao PTB, revelado por VEJA. Os desdobramentos levaram à cassação dos deputados Roberto Jefferson e José Dirceu e, anos depois, às prisões de peças-chave do esquema de corrupção, como o publicitário Marcos Valério. Mais de uma década antes, a CPI do PC Farias já havia demonstrado o poder das investigações parlamentares — a comissão que escrutinou as atividades do empresário iniciou os trabalhos em junho de 1992 e arrastou o presidente Fernando Collor de Mello para um lamaçal de irregularidades que acabou levando ao impeachment.
Já as comissões mais recentes vêm se notabilizando por produzir muito barulho, mas poucos resultados. Entre os principais problemas estão a falta de foco e a sedução do palanque eletrônico. A CPI da Pandemia, em 2021 no Senado, inaugurou a era das inquirições midiáticas, com depoimentos transmitidos ao vivo nas TVs e redes sociais. A comissão, no entanto, foi se perdendo — a cada momento, mudava o rumo, sempre com o objetivo de estar no noticiário. O relatório final, do senador Renan Calheiros (MDB-AL), pediu o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro, ex-ministros, deputados, senadores, blogueiros e empresários por um vasto rol de crimes — mas nada disso resultou em algo concreto. Risco semelhante corre a CPMI do 8 de Janeiro, que, a despeito da motivação nobre — investigar os distúrbios golpistas em Brasília —, começa a se perder na mesma falta de foco e no mesmo Fla-Flu ideológico da última disputa eleitoral, como ficou claro no depoimento do general Augusto Heleno, ocorrido na última terça, 26, quando bolsonaristas e governistas bateram boca por diversas vezes.
Transformar as comissões num mero palanque eletrônico, como mostram os recentes acontecimentos, contribui para o descrédito desse instrumento tão caro à sociedade. “Quando exercem seu papel de fiscalizar o Executivo e cooperam para punir crimes, as CPIs fortalecem a democracia”, avalia José Álvaro Moisés, professor da USP. Um fator que contribui para o descrédito é a banalização e o seu uso para fazer agrados nos bastidores político. “Uma CPI conquista relevância pública quando é ligada à corrupção no governo ou atinge diretamente o presidente. Essas últimas não tinham esse apelo e não produziram fatos importantes”, avalia Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
A relevância também pode ser dada pelos resultados que a CPI produz ao conduzir o seu trabalho de forma técnica. Terminar investigações sobre graves suspeitas de irregularidades sem apontar culpados é absolutamente desastroso. Dizia-se que uma CPI no Brasil sempre acaba em pizza. No caso das últimas comissões, como a da Americanas, os parlamentares nem sequer conseguiram produzir uma massa consistente de denúncias digna de ser levada ao forno. Um vexame.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861