Mulheres assumem o comando de propriedades produtivas no campo
No comando de quase 1 milhão de fazendas no país, elas brilham na gestão dos negócios agrícolas, mas o preconceito ainda resiste
Cristiane Steinmetz, 37 anos
À direita, com a mãe, Clélia, e a irmã, Adriane, assumiu a fazenda da família com a morte do pai e aumentou a produção de soja em 25%
A presença da mulher em postos de liderança, nos últimos anos, deixou de ser raridade em diversos ramos de negócio, mesmo naqueles mais associados a atividades encaradas como estritamente masculinas. É o caso da agricultura. Destaque no resultado do PIB do segundo trimestre, período em que a economia foi mais afetada pela pandemia e caiu 9,7%, a atividade no campo mostrou sua força e cresceu 0,4%. Os cumprimentos pelo bom resultado num período tão desafiador devem ser estendidos não apenas ao homem do campo, mas também, cada vez mais, às mulheres. Segundo os dados mais recentes do Censo Agro, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 19% das propriedades eram dirigidas por mulheres em 2017, o que significa aproximadamente 947 000 fazendas. Em 2006, elas eram apenas 13%. “O agronegócio ainda é muito masculino e precisamos destacar o papel das mulheres do campo na transformação da sociedade. Empoderar o avanço feminino significa fomentar o crescimento e a produtividade como um todo”, afirma a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, um exemplo de que elas chegaram, de fato, ao topo do setor.
Renata Salatini, 44 anos
Quando jovem não teve oportunidade de estudar agronomia, mas acabou comprando uma fazenda com o marido e aprendeu o ofício na prática
A ascensão feminina ao comando das fazendas não acontece sem dificuldades. Em grande parte dos casos, elas só passam a administrar as propriedades após herdarem terras do pai ou do marido. Foi o que aconteceu com a senadora Kátia Abreu no fim da década de 80. Depois de perder o marido, aos 25 anos, grávida e com dois filhos, Kátia assumiu a propriedade em Tocantins decidida a ser uma fazendeira exemplar. Cresceu na carreira e desbravou espaços inéditos para uma mulher, como o comando da bancada ruralista no Congresso e o posto de ministra da Agricultura, em 2015. “Quando comecei a tocar a fazenda, minha posição representava derrota na certa. Tanto que sempre que alguém vê um terreno desarrumado lá no interior logo diz ‘é fazenda de viúva’, mesmo que o dono seja um homem”, conta. “Fui muito cobrada e ainda hoje parece que existe uma torcida esperando você pisar na bola.”
Isabela Becker, 47 anos
Filha do sócio da fazenda Daterra, é diretora de sustentabilidade da empresa. Estudou na Harvard e conquistou contratos de exportação para a propriedade
Se o termo sororidade se tornou moda nos movimentos de defesa dos direitos femininos nas grandes cidades, o mesmo acontece no campo. Diversos grupos surgiram para reforçar a empatia e a união entre mulheres e fomentar o apoio mútuo e a troca de conhecimentos. Há mais de vinte entidades ativas nas zonas rurais do país, a maioria criada depois de um estudo realizado em 2016 sob encomenda da Associação Brasileira do Agronegócio. A partir de relatos de engenheiras agrônomas e veterinárias, detectou-se que as mulheres eram invisíveis no setor e vítimas de preconceito. Em algumas entrevistas, as profissionais contaram ser mal recebidas pelos donos das fazendas, que preferiam ser atendidos por homens. Um exemplo desses grupos é a União das Mulheres do Agro, que oferece qualificação e tem mais de 1 000 cadastradas. A criadora é Cristiane Steinmetz, de 37 anos, que ao lado da mãe, Clélia, e da irmã, Adriane, comanda a Fazenda Boa Vista, em Goiás, desde a morte do pai, em 2014. “Os fornecedores e os vizinhos ficavam com receio e claramente se perguntavam o que eu entendia de um negócio como aquele”, recorda. Depois que assumiu a fazenda, a produção de soja cresceu de 59 sacas por hectare para 73.
Um indicador do avanço feminino é a presença das mulheres nas escolas superiores ligadas ao agronegócio. No ano passado, o curso de engenharia agronômica da Esalq-USP, o mais respeitado do país, atingiu o recorde de 36%. “Na minha época, de 200 alunos só quarenta eram mulheres”, diz Sônia Maria De Stefano Piedade, coordenadora da faculdade em que se formou no ano de 1981. Renata Salatini, de 44 anos, desde jovem queria cursar agronomia, mas não teve essa oportunidade. Já casada, comprou uma fazenda no Mato Grosso do Sul com o marido, que administrava o negócio a distância, a partir de São Paulo. Depois de dificuldades na gestão da propriedade, ela se mudou para a fazenda para comandá-la de perto. “Ali comecei do zero, e foi extremamente difícil”, relembra. Hoje a família possui terras no Pará, onde Renata mora, enquanto o marido segue em São Paulo com a filha.
Cada vez mais preparadas, as mulheres do agronegócio costumam ter cursos de especialização no exterior e experiência internacional. Por trás do sucesso da Daterra, uma das maiores produtoras de cafés especiais do país e exportadora do grão, baseada em Campinas, está o trabalho de Isabela Pascoal Becker. Formada em administração de empresas na Harvard, só entrou no negócio da família após trabalhar em Miami em um escritório de apoio a exportadoras brasileiras. “Certa vez, no Japão, um cliente me perguntou se o meu marido deixava eu trabalhar e com quem ficavam meus filhos quando viajava”, conta. Atualmente, perguntas desse tipo parecem piada, o que é ótimo para o país.
Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704