Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana

Municípios lançam dúvidas sobre dados do Censo, e briga chega à Justiça

O que os move é o reparte do bilionário Fundo de Participação dos Municípios (FPM), calculado com base nos habitantes de cada local

Por Ricardo Ferraz Atualizado em 4 jun 2024, 11h02 - Publicado em 20 jan 2023, 06h00

Em dezembro passado, a pequena Venâncio Aires, a 130 quilômetros de Porto Alegre, viu sua população encolher de uma hora para outra. Nada fora do comum se abateu sobre a cidade de estimadas 72 300 pessoas (menos 3 800 agora), que não registrou tragédia natural nem debandada de moradores. O fenômeno tem, ao que tudo indica, raízes fincadas no campo frio das estatísticas, recém-divulgadas em uma prévia do Censo produzido pelo IBGE. “Foi uma surpresa, uma vez que nossos registros de nascimento e morte apontam justamente para um crescimento médio de 400 homens e mulheres por ano na última década”, diz o prefeito Jarbas da Rosa (PDT).

O enrosco em solo gaúcho, que lança dúvida sobre os dados oficiais, é uma amostra de algo de vulto muito maior e com elevado potencial de barulho. Ao todo, 702 municípios por todo o país, um de cada oito, registraram um declínio na contagem populacional e já começam a questionar na Justiça o levantamento, caso de Venâncio Aires e tantos outros. O que os move é o reparte do bilionário Fundo de Participação dos Municípios (FPM), calculado com base nos habitantes de cada local — quanto menos numerosos forem, menor a bolada federal que pingará nos cofres. Pois quem acompanha a contenda, de lado a lado, acha que essas cidades têm boas chances de levar a melhor, em um imbróglio sem precedentes na história dos Censos.

No centro da disputa está um mar de pontos de interrogação sobre os métodos aplicados pelo IBGE, que toca com atraso o mais detalhado mapa demográfico de qualquer nação. No Brasil, o primeiro Censo data de 1872 e, desde 1950, nunca deixou de ser realizado e trazido à luz para cumprir o seu papel de apontar tendências e nortear as políticas públicas. Com a pandemia, o processo naturalmente emperrou, daí a aferição ter se arrastado de 2020 até agora, com previsão de ser divulgada por completo em março. A contagem da população, porém, não poderia esperar — por lei, tinha de estar pronta no máximo em 31 de dezembro de 2022, exatamente para que se definisse o valor dos repasses municipais. E foi a pressa que impôs a necessidade de se pôr em prática um recurso inédito: fazer uma projeção da população com base nos dados coletados apenas parcialmente no ano passado, no lugar de se contabilizar os brasileiros um a um, como ocorre por definição em um Censo. “O que o IBGE fez não é científico nem confiável do ponto de vista estatístico”, opina um demógrafo que participou do processo, sob a condição de anonimato.

MILAGRE DA SUBTRAÇÃO - Venâncio Aires (RS): a cidade encolheu só no papel -
MILAGRE DA SUBTRAÇÃO - Venâncio Aires (RS): a cidade encolheu só no papel – (Prefeitura Venâncio Aires/.)

No terreno das estimativas, considerados os números de 2010 e o ritmo de crescimento da população, ela subiria de 196 para 215 milhões de habitantes na década, de acordo com projeções atualizadas anualmente. Por isso causou particular espanto o fato de o primeiro número anunciado ter ficado na casa dos 200 milhões. Os próprios técnicos puseram em dúvida a conta, que, refeita, cravou 207,8 milhões de pessoas vivendo hoje no Brasil. Diante das idas e vindas, os demógrafos chegaram a se posicionar contra a divulgação do conteúdo do relatório durante uma reunião com a comissão de acompanhamento do Censo. Tamanho era o desconforto que integrantes das coordenadorias de Metodologia e Qualidade e de População e Indicadores Sociais pediram que seus nomes fossem retirados da nota técnica que explicava as mudanças. Mesmo assim, o IBGE seguiu adiante, com o aval do órgão consultivo formado por catorze especialistas — apenas a ex-presidente do órgão Martha Mayer, se absteve. “Foi uma escolha de Sofia. Optamos pela melhor alternativa possível”, diz a demógrafa Suzana Cavenaghi, da comissão.

Continua após a publicidade

A situação atual é, na verdade, o retrato acabado de um enredo de trapalhadas e erros que vem se desenrolando nos últimos tempos no IBGE. Além do forçoso adiamento por duas vezes, os recursos para o levantamento minguaram 30%, o que levou a um drástico corte de verbas em um setor crucial para o bom funcionamento do Censo, o de divulgação, que orienta a população sobre a importância de abrir suas casas para os recenseadores. Sem isso, muitos deram com a cara na porta e viu-se então um efeito dominó: como eles ganham por entrevista, passaram a faturar menos e uma parcela, já bem treinada, desistiu da missão, gerando um déficit — em certos momentos, apenas metade dos contratados estava nas ruas. O atraso de salários também pesou. Nenhum desses problemas chegou até agora aos ouvidos da ministra do Planejamento, Simone Tebet, que tem o IBGE sob sua alçada e está debruçada sobre nomes para presidir o instituto.

Embora o ponto-final dessa novela esteja previsto para daqui a dois meses, há cidades em que metade das residências ainda não foi visitada. A atual gestão garante que todos os esforços estão sendo feitos para aumentar a coleta de dados e reduzir o grau de incerteza. O que se sabe sobre a gangorra demográfica nacional é que ela delineia um movimento de diminuição da população brasileira, a exemplo de inúmeros países, mas só deve acontecer mesmo em 2047, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). Que as projeções estatísticas não antecipem o fenômeno. “Se houver mesmo discrepância entre projeção e realidade, há duas alternativas: ou jogam-se os dados fora ou faz-se um trabalho duro para corrigi-los”, avalia o demográfico José Eustáquio Alves. “Existe muita pesquisa por trás da metodologia que adotamos e, pela primeira vez, utilizamos ferramentas tecnológicas que permitiram cruzamentos com outros bancos de dados. O Censo é sólido”, defende Cimar Azeredo, presidente em exercício do IBGE. Essencial para a formulação de políticas que podem melhorar o bem-­estar do brasileiro, o Censo precisa ser confiável para que elas sejam efetivas.

Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825

Publicidade

Imagem do bloco

4 Colunas 2 Conteúdo para assinantes

Vejinhas Conteúdo para assinantes

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.