O coronavírus deixou até agora no Brasil um triste legado de mais de 90 000 mortos e 2,5 milhões de infectados, além da recessão econômica. Mas se é possível enxergar algum alento em meio à tragédia, ele vem do fato de a pandemia ter arrefecido uma chaga brasileira: a criminalidade. Levantamento feito por VEJA em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul mostra que no trimestre em que a quarentena foi adotada, de abril a junho, houve uma queda expressiva de crimes contra a vida (homicídios e latrocínios) e o patrimônio (roubos e furtos) em comparação com o mesmo período de 2019.
Há justificativas simples e outras mais complexas para o movimento. Sobre roubos e furtos, a explicação está no próprio isolamento social. “A diminuição deve-se, principalmente, à redução da atividade econômica. Há menos pessoas nas ruas, menos dinheiro em circulação”, diz Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A constatação mostra como era exagerado um dos argumentos do presidente Jair Bolsonaro contra a adoção da quarentena no país — em março, ele dizia que, se a população fosse impedida de trabalhar, haveria uma onda de saques, assaltos e furtos. Não houve, mas é fato que o seu próprio governo contribuiu para evitar tal cenário, com o pagamento do auxílio emergencial de 600 reais a 63,5 milhões de pessoas. As blitze sanitárias com fiscais, policiais e guardas também ajudaram a inibir a ação de criminosos.
Já para a queda de assassinatos e latrocínios, a explicação pode não estar só na pandemia. O movimento já vinha se desenhando desde 2017, quando as mortes violentas atingiram o seu pico, em grande parte influenciado pela guerra entre facções criminosas. Desde então, os governos federais adotaram políticas para enfrentar esse tipo de crime organizado. Na gestão Michel Temer, foi criado o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que integrou órgãos de inteligência e padronizou informações e procedimentos — também aumentou a verba da segurança pública, que ganhou até ministério próprio. Com Jair Bolsonaro, a remoção de lideranças criminosas, como Marcos Willians Herbas Camacho, chefe do PCC, para presídios federais acuou as facções e foi considerada uma medida importante para a redução dos crimes violentos. “No Rio, a tendência de queda é observada desde o início de 2019, um quadro positivo que vem evoluindo gradativamente. Os meses de quarentena serviram para acentuar isso”, afirma a presidente do Instituto de Segurança Pública, Adriana Pereira Mendes. Enquanto o Rio de Janeiro experimentou uma redução de 21% em homicídios e Minas Gerais, de 5% (veja o quadro abaixo), em São Paulo o indicador se manteve praticamente estável: acusou uma alta de 1%.
Infelizmente, o cenário de queda nas taxas exige alguns pontos de atenção. Um deles é a possibilidade de o crime organizado voltar à carga em decorrência dos recentes revezes financeiros. “Devido à queda de roubos e furtos, as facções estão descapitalizadas. Com o retorno da circulação normal de pessoas, há a tendência de tentarem repor o prejuízo acumulado na pandemia”, acredita Rafael Alcadipani. O pesquisador Arthur Trindade, do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da UnB, levanta outro problema: a crise fiscal que se avizinha. “Em alguns estados, ela trará problemas para a operação das polícias. Não haverá dinheiro. O caos no Rio, que justificou a intervenção federal em 2018, foi causado por crise fiscal, metade da polícia parou”, alerta. Outro ponto preocupante é que a deterioração econômica, combinada ao fim do auxílio emergencial em setembro, pode provocar o recrudescimento da criminalidade. Para os especialistas, os governantes terão um triplo desafio: executar políticas socioeconômicas para os mais afetados, equilibrar as contas e promover uma minuciosa estratégia de combate à violência, sob pena de assistirem a uma reviravolta estatística que leve a outra escalada da criminalidade. Mas tomara que nada disso aconteça e que os números continuem a cair.
Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698