Novos episódios de alagamentos e deslizamentos expõem drama do descaso
Mais uma vez, casos mostram a falta de preparo do poder público para enfrentar um desafio que só vai crescer

Em fevereiro de 2022, ao menos 93 pessoas morreram no Morro da Oficina, em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Aquela tragédia foi a mais aguda da história, mas apenas mais um drama entre tantos que assolam a comunidade ao longo dos tempos. Há poucos dias, o cenário voltou a ser de enxurradas e desabamentos. As obras de contenção, inacabadas ou sequer iniciadas, não puderam impedir os estragos. O cenário fez a União reconhecer o estado de emergência, o que se estendeu a outras cidades, como Angra dos Reis e Duque de Caxias. Tragédias anunciadas, os casos voltam a expor a dificuldade que o poder público tem para enfrentar um problema que tende a ser cada vez mais desafiador.
O drama fluminense, que se repetiu em outros locais do Brasil, ocorre um ano após a população assistir, estarrecida, à catástrofe que devastou 95% do Rio Grande do Sul e ceifou a vida de 183 pessoas, na maior tragédia climática da história do estado. Apesar do volume massivo de recursos que o governo federal liberou para responder à crise — 81,4 bilhões de reais —, a reconstrução encontra percalços. Basta dizer que 468 gaúchos ainda não conseguiram retornar a suas casas. Em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, que voltou a sofrer com deslizamentos de terra, começaram há pouco as obras em estradas e colégios destruídos na tragédia do ano passado. Em Canoas, há escolas com aulas suspensas, como a Emei Vó Picucha, que foi destruída por três eventos climáticos extremos em menos de dois anos.

A necessidade de uma nova postura é urgente porque os desastres climáticos não só vêm piorando como vão continuar a piorar. No ano passado, 3 620 alertas de riscos geológicos e hidrológicos foram emitidos pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), maior número em catorze anos de monitoramento. Segundo o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, 1 920 municípios (um terço do total) estão em situação de alta vulnerabilidade para desastres, mais que o dobro de 2012 (veja o quadro). “Há risco de tragédias mais frequentes em virtude da expansão urbana em áreas suscetíveis, além da intensificação de eventos extremos de clima em áreas vulnerabilizadas”, diz Regina Alvalá, diretora do Cemaden.

A despeito do perigo crescente e do estado de choque em que ficou o país com a tragédia gaúcha, o assunto praticamente sumiu da pauta política. Para especialistas, as cidades vivem um vácuo completo na gestão de riscos e catástrofes, com baixo efetivo de agentes especializados, falta de carreiras estruturadas na Defesa Civil e ausência quase total de planos de contingência e emergência. “Sobram recursos para reconstruir as áreas afetadas e socorrer as vítimas, mas não há mapeamento de rotas de fuga e abrigos ou formação de lideranças comunitárias para evitar mortes durante os desastres”, avalia Jordan Souza, coordenador da pós-graduação em gestão pública e defesa civil da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Os municípios dizem que não podem enfrentar a questão sozinhos e reclamam que são os mais responsabilizados pela população por terem de lidar diretamente com os impactos dos desastres. Segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), haverá cada vez mais danos e prejuízos se as cidades não tiverem o efetivo apoio que a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil determina à União. “O Brasil somente se tornará um país resiliente e preparado para enfrentar desastres quando os municípios se tornarem resilientes e preparados para dar a devida resposta à população na ocorrência de desastres”, afirma Paulo Ziulkoski, presidente da entidade. O despreparo é alarmante: 57% das cidades não possuem nenhum sistema de alerta. Entre 2020 e 2024, a União liberou 3 bilhões de reais aos municípios para prevenção, resposta e recuperação de desastres, dinheiro considerado insuficiente — a estimativa da CNM é que nesse período o clima tenha provocado prejuízos de 544 bilhões de reais.

A resposta em grande escala tem ocorrido apenas de forma reativa. Somente em 2024, o governo federal reconheceu situações de emergência ou calamidade em mais de 2 200 municípios, o que permitiu liberar verbas emergenciais para remediar o problema. Em contrapartida, o planejamento da prevenção e redução de riscos se arrasta em Brasília. Um bom exemplo é o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, previsto em medida provisória de Dilma Rousseff em 2011, mas que só começou a ser feito em 2023. O lançamento, que seria em junho de 2024, ainda não ocorreu. O ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, reconhece o atraso, mas diz que as políticas contempladas no documento já estão em implementação (leia a entrevista abaixo).
Em meio às profundas mudanças climáticas que afetam o planeta e ao aquecimento global acelerado, os estudos meteorológicos apontam para a crescente frequência e intensidade de eventos extremos nos próximos anos. Os riscos variam conforme as regiões e, por vezes, as mudanças climáticas resultam em cenários discrepantes em uma mesma região. Um exemplo é a Amazônia, que vive episódios quase simultâneos de chuvas intensas e de estiagem severa. Em fevereiro de 2024, enquanto o Acre era castigado por temporais que desalojaram mais de 24 000 pessoas, Roraima liderava o ranking nacional de focos de incêndio. Em Rondônia, entre outubro de 2024 e abril deste ano, o Rio Madeira passou de uma seca histórica para um quadro de enchentes, subindo mais de 16 metros em seis meses.

Os investimentos em Defesa Civil e tecnologia, ainda que urgentes, precisam ser acompanhados também por iniciativas de proteção ambiental, capazes de frear a rápida elevação das temperaturas no planeta. Nesse âmbito, uma proposta crucial está na pauta da Câmara dos Deputados: a Lei do Mar, que amplia as normas de preservação dos ecossistemas da costa brasileira. Segundo especialistas, a vegetação costeira é essencial para a absorção de carbono na atmosfera, serve de proteção para cidades litorâneas contra o aumento do nível do mar e ajuda a desacelerar o aquecimento dos oceanos, fenômeno que intensifica os desastres climáticos por todo o continente. “Um oceano febril, como temos hoje, absorve menos temperatura da atmosfera e altera as circulações de massas de ar, o que agrava eventos extremos tanto de chuvas quanto de seca”, explica Ronaldo Christofoletti, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e representante da Unesco no Brasil.
Elaborar e implementar uma política eficiente de enfrentamento a desastres climáticos, capaz de integrar ações federais aos governos estaduais e municipais, não é simples. Além de investimentos pesados em tecnologia, defesa civil e infraestrutura, a missão exige uma mudança de mentalidade da população em relação aos riscos e, acima de tudo, muita vontade política. A dificuldade da empreitada, no entanto, não pode ser argumento para adiar uma discussão que, há muito, se encontra defasada. Enquanto as autoridades, em todos os níveis, priorizarem a estratégia de reação às catástrofes, deixando em segundo plano a prevenção e contenção de danos, o risco é de que, cada vez mais, os eventos climáticos extremos voltem a provocar catástrofes país afora.
‘Preparação é questão cultural’
Apesar do atraso na entrega do Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, o ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, afirma que as diretrizes do documento já são postas em prática e que o governo está avançando nas ações de resposta a tragédias nos municípios.

Quais são os pilares do plano que será lançado? Ele aborda a prevenção e a preparação nacional para lidar com desastres e criar resiliência a partir da atuação tripartite entre governo federal, estados e municípios.
O plano foi prometido para junho de 2024, mas ainda não foi lançado. Qual é a razão do adiamento? Ele está pronto e está sendo praticado. Houve um atraso no lançamento em razão dos problemas de saúde do presidente Lula no ano passado. Mas já temos o primeiro produto, o Defesa Civil Alerta nos celulares, que foi desenvolvido junto com o Ministério das Comunicações e está a serviço do Brasil. Mesmo antes que o plano estivesse pronto, tivemos a atuação da União na resposta organizada às chuvas no Rio Grande do Sul e no Litoral Norte de São Paulo e nos incêndios no Cerrado e no Pantanal. Continuamos trabalhando a prevenção e a mitigação de riscos, de maneira que essa atuação salve vidas e proteja o patrimônio.
Mesmo com o novo serviço de alertas e os recursos emergenciais liberados pela União, os municípios ainda estão despreparados para as tragédias climáticas. O que falta para melhorar esse cenário? A preparação para enfrentar os desastres é uma questão cultural. Muitas pessoas se assustaram quando fizemos os primeiros usos do Defesa Civil Alerta. Com o plano nacional e as políticas públicas sendo implementadas, a população começará a entender que os governos locais, sob a supervisão federal, têm estratégias de contingência, com alertas para as áreas afetadas, rotas de fuga e locais para abrigo. A frequência e a intensidade dos eventos não vão diminuir, mas não tenho dúvida de que a resiliência aumentará a cada dia.
Publicado em VEJA de 11 de abril de 2025, edição nº 2939