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O desafio da segurança alimentar

O crescimento da população mundial torna mais complexa a distribuição da produção de alimentos para 2,4 bilhões de pessoas que ainda passam fome no planeta

Por Leandro Steiw
Atualizado em 18 out 2023, 11h18 - Publicado em 16 out 2023, 20h17

Três em cada dez pessoas no mundo vivem em insegurança alimentar moderada e grave, segundo estimativa da FAO, agência das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura. São 2,4 bilhões de pessoas que, sem dinheiro suficiente, não comem ou comem mal em algum momento do mês. Para piorar, 3,1 bilhões não têm condições de pagar uma dieta saudável, devidamente equilibrada entre alimentos in natura, processados e ultraprocessados. No Brasil, a situação não é diferente. Um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) calculou que pouco mais de 65 milhões de brasileiros, ou quase 30% da população, vivem em situação de insegurança alimentar moderada e grave, corroborando os dados da FAO.

O paradoxo de um mundo que produz alimentos suficientes, mas não consegue atender toda a população, acende o alerta. Em 2050, o planeta terá 9,7 bilhões de habitantes, de acordo com a projeção da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). O Brasil, por exemplo, produz anualmente cerca de 320 milhões de toneladas de grãos e cereais e 30 milhões de toneladas de carne bovina, de frango e suína. Exporta 60% da soja em grão, 40% do milho e 30% da carne que vem do campo, dependendo da safra e da demanda mundial. O país é relativamente autossuficiente em verduras, legumes e frutas — mercado altamente pulverizado, no qual dois terços da produção vêm da agricultura familiar, que representa 67% dos 15 milhões de produtores rurais do país.

A carestia é um problema mais de distribuição do que de produção de alimentos. Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil, enumera quatro situações que costumam dificultar o acesso aos produtos da agropecuária no mundo. A primeira é o conflito armado, que desencadeia a escassez de alimentos. Em seguida, as crises econômicas e financeiras, responsáveis por inflação, perda de renda e baixa acessibilidade aos alimentos. A terceira causa é climática — secas ou enchentes que destroem a produção. E, por fim, o choque sanitário provocado por epidemias e pandemias.

Nos últimos anos, as quatro situações se sucederam e se combinaram. “Neste momento, dizemos que a segurança alimentar está em uma tempestade perfeita, porque as quatro causas estão acontecendo de maneira simultânea em diversas partes do mundo”, afirma Zavala. Desde 2015, quando as Nações Unidas estabeleceram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a proporção da população mundial em insegurança alimentar aumentou de 22% para 30%, conforme a FAO. O Brasil voltou ao Mapa da Fome: em insegurança alimentar grave, há 33 milhões de pessoas passando fome, conforme o estudo da Rede Penssan.

A boa notícia é que não são necessários projetos mirabolantes para resolver o problema. “A maioria das políticas para agricultura familiar em países como México, Colômbia, Venezuela e Peru, além da América Central, teve origem nas políticas públicas de inclusão da agricultura familiar brasileira”, diz Zavala. Ele cita o Programa de Aquisição de Alimentos, criado em 2003, pelo qual o poder público compra diretamente de produtores da agricultura familiar e destina os alimentos para pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar e nutricional. O programa ataca em duas frentes: na comercialização da produção de associações e cooperativas, nem sempre com acesso fácil ao mercado, e no combate à fome. Estudando o período de 2011 a 2018, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) contabilizou 450 000 agricultores beneficiados em 83% dos municípios brasileiros.

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O conceito atual de segurança alimentar origina-se da preocupação com o acesso aos alimentos depois da Segunda Guerra Mundial. A produção agrícola estava desestruturada na Europa arrasada. O combate à fome era uma urgência. Nas décadas seguintes, a ideia de quantidade foi sendo complementada pela de qualidade do que se comia. “O mundo precisava de alimentos seguros do ponto de vista sanitário e nutricionalmente adequados para as necessidades da população”, diz Sílvia Helena Galvão de Miranda, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), vinculado à Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo.

A busca da segurança nutricional impôs novos desafios para os governos, a iniciativa privada e a sociedade civil. Um deles é a diversificação da produção. A JBS, por exemplo, maior produtora e processadora de carne bovina do mundo, está investindo para ser líder na produção de uma ampla variedade de proteínas, para atender a diferentes necessidades e hábitos de consumo. A empresa, que começou focada em carne bovina há 70 anos, no interior de Goiás, agora possui uma plataforma global de produção que abrange proteínas de bovinos, suínos, aves, pescados, ovinos, alternativas baseadas em plantas e proteína cultivada a partir de células animais.

Outra frente importante é o estímulo ao consumo de certos produtos in natura, como frutas, legumes e hortaliças, que possam substituir industrializados e ultraprocessados. Os alimentos in natura são relativamente mais caros por uma questão de economia
de escala e pelos cuidados que exigem devido à sua perecibilidade, segundo Sílvia. Muito simplificadamente, o aumento da produção pode diminuir o custo por unidade produzida — como ocorre com a cultura da soja e do milho, em áreas vastas, por exemplo.

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Terceiro maior exportador e quarto produtor agrícola do mundo, o Brasil é desafiado a levar a mesma eficiência produtiva para todos os setores da agropecuária. “Temos uma produção agrícola de sucesso, com alta produtividade e baixos custos, mas precisamos trabalhar um pouco melhor a diversificação, pensando no abastecimento de alimentos das áreas nas quais já se consegue identificar uma concentração de insegurança alimentar, principalmente perto dos centros urbanos”, afirma Sílvia. Nem as populações rurais escapam: 36% das pessoas no campo vivem em insegurança moderada e grave. No meio urbano, são 30%.

O desperdício de alimentos também joga contra a segurança alimentar. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) estima que 1 bilhão de pessoas poderiam comer todos os dias se fossem aproveitados os alimentos que vão para o lixo.

A estatística mostra que 14% dos alimentos produzidos para consumo humano são perdidos e 17% desperdiçados, a maior parte por falta de refrigeração adequada ao longo da cadeia logística. Todos os anos, 3 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa são emitidos por alimentos desperdiçados, segundo cálculo do Programa Mundial de Alimentos da ONU.

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Outro desafio é que tanto a agricultura empresarial quanto a familiar são dependentes de insumos químicos, como fertilizantes, produzidos no exterior e condicionados às variações de preços internacionais. Dependendo da safra e da região, os fertilizantes representam de 20% a 40% do custo total da produção de grãos. Para Sílvia, deve-se investir em pesquisas e incentivar o desenvolvimento de formas sustentáveis de adubação e manejo de pragas e de doenças, para reduzir a dependência de produtos químicos. “Precisamos fazer uso mais amplo e mais eficiente do que chamamos de manejo do sistema produtivo”, diz a pesquisadora da USP. “Às vezes, não é possível eliminar todo o controle químico, mas dá para adotar algumas medidas como controle biológico, uso de biofertilizantes e rotação de culturas nas áreas, que ajudam a controlar as pragas e doenças.”

A adoção desses sistemas de manejo exige maior assistência técnica no campo, principalmente para pequenos produtores e para aqueles que não têm acesso fácil à informação. “A extensão rural tem papel importante na busca dessa agricultura em moldes mais sustentáveis, sem esquecer que precisamos produzir alimentos a preços acessíveis”, afirma Sílvia. Historicamente, o país tem conseguido. Entre as décadas de 1950 e 1970, os preços dos produtos agropecuários caíram 30%, mas os preços ao consumidor subiram 50%, de acordo com cálculos de Geraldo Barros, coordenador científico do Cepea. A partir dos anos 1980 e impulsionada pelo Plano Real, em 1994, a discrepância entre a variação dos dois preços desapareceu. Ambos caem e sobem praticamente juntos. Melhorar a renda da população, dando fôlego para os momentos de crise política, econômica ou sanitária, é o desafio mais imediato na direção da segurança alimentar. “Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome e havia reduzido o número de pessoas abaixo da linha de pobreza. Portanto, estávamos melhorando a situação em termos de segurança alimentar”, recorda Sílvia. O clima posterior de instabilidade política e econômica, agravado pela pandemia de Covid-19 e pela desestruturação de diversas políticas públicas, contribuiu para o aumento do desemprego e a pressão inflacionária.

Desde então, triplicou a proporção de brasileiros em insegurança alimentar moderada e grave, segundo o relatório da Penssan.
Para Barros, a concentração de renda e o nível de pobreza na zona rural — percentualmente, o dobro do total do país — são as maiores deficiências brasileiras. Além disso, apenas 9% dos estabelecimentos rurais concentram 85% do valor de produção. “É fundamental que, com o apoio do setor público, os produtores menores se organizem em associações ou cooperativas para também se qualificarem tecnicamente e desfrutarem das vantagens comerciais, financeiras e tecnológicas dos grandes produtores”, diz Barros.

O cenário não é de pessimismo, na opinião de Rafael Zavala. “O Brasil é uma das experiências mais bem-sucedidas no combate à fome”, afirma. “O grande desafio é estar presente no mapa da alimentação saudável, ainda mais no contexto da pós-pandemia, no qual sabemos que também aumentou a má nutrição. Depois dos dois países mais populosos, China e Índia, e dos Estados Unidos, o Brasil é o maior produtor de alimentos. Por isso, não é admissível que um país que fornece alimentos para o mundo tenha uma
única comunidade com fome.”

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