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O drama dos índios em meio ao surto de coronavírus

Indígenas que moram em cidades, aldeias ou isolados estão vulneráveis à Covid-19 — e há o risco de sumiço de algumas culturas dos povos originários

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h07 - Publicado em 26 jun 2020, 06h00
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  • Desde que o primeiro europeu pôs os pés no Brasil, a história de vida dos índios esteve sempre intimamente atrelada a surtos epidêmicos. Foi assim com a varíola, com a malária e com as diferentes cepas de gripe — atalho para a triste e acelerada redução de populações, além, é claro, dos sucessivos processos de ocupação, sinônimo de agressividade e de violência. A pandemia do novo coronavírus faz, portanto, renascer um medo ancestral e justificado.

    A fragilidade do sistema de atendimento médico destinado aos índios, vinculado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), faria pressupor drama — e é o que recente levantamento estatístico comprova. A taxa de mortalidade pela Covid-19 entre indígenas (número de óbitos por 100 000 habitantes) é 150% mais alta do que a média brasileira e 20% mais elevada do que a registrada somente na Região Norte, a mais crítica entre as cinco regiões do país. Levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) aponta 8 428 casos confirmados e 365 mortes em decorrência do Sars-­CoV-2, com 112 povos atingidos. A taxa de letalidade, de acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), também é preocupante: entre os indígenas, o índice é de 6,8%, enquanto a média brasileira oficial é de 5% (pode ser menor porque nem todo mundo foi testado). Na Região Norte é de 4,5%.

    Existem no Brasil hoje 900 000 índios, o equivalente a 0,47% da população, divididos entre 305 povos. O socorro negligenciado é apenas a ponta final de uma engrenagem fadada a fazer circular o vírus, dada a proximidade com os centros urbanos e o contato com garimpeiros, como ocorre na Terra Indígena Ianomâmi, a maior do país, em Roraima, onde vivem 27 398 representantes do mais conhecido grupo de caçadores-agricultores.

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    Há uma outra agravante: o choque cultural. Em Manaus, a indígena e técnica de enfermagem Vanda Ortega Witoto acompanha o quadro de saúde dos moradores do Parque das Tribos, bairro silvícola na capital do Amazonas. Em centros urbanos, o atendimento é feito pelo SUS, onde não há estrutura específica e nem sempre eles são registrados como indígenas, o que leva à subnotificação de casos. “Os hospitais não têm redes, a alimentação é diferente e muitos não falam português”, disse Vanda a VEJA. “É situação que impacta na recuperação do paciente.” O bairro reúne 700 famílias de 35 povos. Mais de 200 pessoas foram testadas e 68 tiveram o resultado positivo para Covid-19.

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    ACESSO FECHADO - O tuxaua Francisco Uruma Kambeba: a aldeia com 55 índios deixou de receber a visita de turistas (Jonne Roriz/VEJA)

    Assim como no restante da população, os mais vulneráveis são os idosos. Nas aldeias, os anciões têm papel fundamental. “Os detentores da sabedoria milenar são os velhos, os pajés e os caciques”, diz o superintendente-geral da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), Virgílio Viana. Evidentemente, em qualquer grupo social toda morte é relevante, e não há como estabelecer nenhum tipo de relativização. No caso dos índios, contudo, há risco de extinção de conhecimento e de idiomas. Ao menos vinte líderes idosos morreram por causa da Covid-19. Outra questão é a estrutura social. Segundo o antropólogo indigenista da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Lino João, a morte de oitenta pessoas em uma comunidade formada por 200 indivíduos, por exemplo, pode desestruturar o grupo. “As perdas nas cidades, no limite, embora lamentáveis, não interferem no funcionamento da sociedade, diz Lino. “No caso de uma aldeia, ela pode desaparecer.”

    Em Manacapuru, a 64 quilômetros de Manaus, Francisco Uruma Kambeba é o tuxaua, o líder, da aldeia Tururucari-­Uka, com 55 pessoas. O lugar vive do turismo, e o acesso foi fechado em fevereiro. Ainda assim, alguns moradores vão à cidade para fazer compras ou para buscar alguma forma de renda para sobreviver. “A estimativa é que 30% dos moradores estejam infectados. Temos medo do vírus e a aldeia nem sequer tem cemitério, até hoje nunca tivemos de lidar com a perda de um parente”, afirma.

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    Indaga-se, com curiosidade, o que seria dos índios isolados, naturalmente apartados do contato com cidadãos de outras áreas. A resposta: há preocupação. No Vale do Javari, no Amazonas, há a maior concentração de indígenas isolados no Brasil, com cerca de sete povos. Sem contato, parecem protegidos. Na mesma região, outros cerca de 7 000 são considerados de “contato recente”, que decidiram se aproximar nos últimos quarenta anos. Entre eles, há ao menos três contaminados, supostamente por causa da relação com funcionários do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), no Vale do Javari. Não há dúvida: nas aldeias, na floresta profunda e sobretudo nas cidades, os desafios para os indígenas remetem aos primórdios.

    Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693

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