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O elo perdido

VEJA localiza a testemunha que as autoridades acreditam ser capaz de esclarecer a conexão entre o presidente Temer e as irregularidades no Porto de Santos

Por Thiago Bronzatto, de Paris
Atualizado em 4 jun 2024, 16h27 - Publicado em 30 mar 2018, 06h00

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A Polícia Federal e o Ministério Público tentam juntar as peças do quebra-cabeça que envolve uma grave suspeita contra o presidente Michel Temer: ele seria mentor e beneficiário do esquema de corrupção instalado há mais de duas décadas no Porto de Santos. A Lava-Jato já colheu depoimentos e indícios que convergem para um mesmo ponto: empresas pagaram milhões de reais em propina a políticos para garantir privilégios na operação de terminais portuários. O Supremo Tribunal Federal já decretou a quebra dos sigilos fiscal e bancário do presidente. Os empresários citados negam. Os políticos também negam. O presidente Temer afirma que nunca, nem antes nem depois de assumir o governo, moveu uma palha para ajudar quem quer que fosse nessa área. Mas as autoridades estão atrás de uma testemunha que pode mudar o curso da investigação — uma mulher que viu de perto a gênese do esquema, colheu documentos que provam sua existência desde a década de 90, sabe o nome dos personagens envolvidos e chegou até a ameaçar denunciá-los — mas, depois, fez um acordo, desistiu das acusações e desapareceu. VEJA a localizou.

Segurando uma bolsa da grife italiana Gucci e vestindo um longo casaco branco com estampas florais da marca Heaven Please+, a blogueira de moda Érika Santos, a testemunha, caminhava apressada pela Avenida Champs-Élysées, em Paris, na tarde do dia 13 de março passado. Após almoçar no badalado restaurante Matignon e cortar o cabelo no spa Les Bains de Léa Paris, ela foi abordada pela reportagem de VEJA quando se dirigia à estação de metrô.

Pela primeira vez em quase duas décadas, Érika falou do esquema de pagamentos de suborno que ela mesma denunciou vinte anos atrás. “Todo mundo já sabe a verdade há muito tempo”, disse. Que verdade? A blogueira se mostra incomodada com a pergunta: “Por que vocês não pegam a planilha e vão atrás? Não tenho o que falar mais sobre essa história”. Em 2001, Érika apresentou à Justiça uma planilha que, segundo ela, revelava a existência de um esquema de “caixinha e propina” no Porto de Santos. O documento mostrava supostos pagamentos de suborno de empresas a personagens identificados como “MT”, “MA” e “Lima”. Os investigadores suspeitam que MT seja Michel Temer, MA se refira ao economista Marcelo de Azeredo e Lima corresponda ao hoje famoso coronel João Baptista Lima Filho, amigo do presidente e um dos presos na operação da quinta-feira 29.

Antes de tornar-se blogueira de moda e desfrutar uma vida confortável na Europa, Érika morava numa casa simples em Sobradinho, cidade-satélite de Brasília. No fim da década de 90, ela conheceu o economista Marcelo de Azeredo, então presidente da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), administradora do Porto de Santos. Ela, estudante, tinha 20 anos. Ele, 35, gostava de dirigir carros importados, fazer viagens para o exterior e cultivava um bom trânsito político no PMDB paulista. Chegou a concorrer a uma vaga de deputado estadual pelo PMDB nas eleições de 1994, mas não foi eleito. Apaixonados, Érika e Marcelo resolveram morar juntos em São Paulo. O “conto de fadas”, nas palavras da própria Érika, acabou no momento em que ela teria sido agredida por ele. O caso foi parar na Justiça, com um pedido de separação litigiosa. Para provar que Azeredo tinha condições de lhe pagar uma pensão, Érika expôs a vida financeira do ex-companheiro, anexando ao processo uma planilha que, agora, quase vinte anos depois, desnuda as raízes de um escândalo federal.

Os documentos mostram que o grupo Libra — que tem como sócio Gonçalo Torrealba, cuja prisão também foi decretada na quinta-feira — obteve a concessão de dois terminais do Porto de Santos só depois de desembolsar 1,28 milhão de reais em propina para o trio “MT”, “MA” e “Lima”. Desse valor, 640 000 reais foram destinados a “MT”, enquanto a outra metade foi rateada entre “MA” e “Lima”, de acordo com a planilha. Em outra transação listada na planilha, a empresa Rodrimar — mais uma operadora do porto, cujo dono, Antônio Celso Grecco, foi preso — repassou 600 000 reais para o trio. Há ainda anotações sobre outros contratos fechados com a Codesp. A empresa Argeplan, da qual o coronel Lima é atualmente um dos sócios, também aparece nas planilhas associada a porcentuais. Na época da separação litigiosa do casal, em 2001, VEJA publicou uma reportagem com os detalhes da denúncia, mas as investigações não evoluíram. “Nessa história só os mais fracos é que se prejudicam”, diz a blogueira.

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Na ocasião, ao tomar conhecimento das acusações, o então deputado Michel Temer acionou o advogado Antonio Cláudio Mariz, o mesmo que hoje o defende na investigação do Porto de Santos. Temer ameaçou processar Érika, mas, depois de uma reunião entre as partes, o caso acabou sendo encerrado em um acordo extrajudicial cujos termos são desconhecidos. A blogueira demitiu seus antigos advogados, acusou-os de entregar as tais planilhas sem seu conhecimento, encerrou o processo de separação litigiosa com o seu companheiro, retratou-se e desapareceu. Em 2001, Temer disse a VEJA que, quando os rumores de corrupção no Porto de Santos surgiram, ele acionou o então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, atual chefe da Casa Civil, para resolver o problema. “Pedi que Azeredo (então companheiro de Érika) fosse substituído porque os comentários estavam prejudicando meu nome. Padilha tirou a diretoria e pôs outra, e tudo foi feito a meu pedido”, afirmou o então deputado, deixando claro quem era o mandachuva daquela área. Em discurso na Câmara, ainda naquela época, Temer chegou a elogiar a troca de comando no Porto de Santos: “Uma dessas modificações levou à presidência da Codesp o nosso ilustre companheiro deputado Wagner Rossi”. Ex-ministro da Agricultura nos governos Lula e Dilma, Rossi também foi preso na quinta-feira.

Até hoje não se sabe o teor do acordo entre Érika, o marido e os advogados de Temer. O fato é que o pacto soterrou o caso. A Polícia Federal ainda tentou investigar a denúncia da blogueira, intimou Temer três vezes a depor, mas ele nunca prestou esclarecimentos alegando que exercia o mandato de deputado federal e tinha direito ao foro privilegiado. A investigação, em razão disso, foi remetida ao Supremo Tribunal Federal, onde dormitou até ser arquivada, em abril de 2011, por determinação do ministro Marco Aurélio Mello. Com mais de quatro volumes de papelada, incluindo os documentos e as planilhas sobre o Porto de Santos, o caso ficou esquecido num escaninho da Justiça em São Paulo. Temer livrou-se de um embaraço, que agora ganha outra dimensão, e Érika reconstruiu sua vida como blogueira de moda no exterior.

Outra testemunha – Marcelo de Azeredo (atrás de Temer, no fundo): amigos há décadas
Outra testemunha – Marcelo de Azeredo (atrás de Temer, no fundo): amigos há décadas (//Reprodução)

No despacho que determinou a prisão dos empresários, amigos e ex-assessores de Temer, o ministro Luís Roberto Barroso deixou claro o que está em jogo: “Há fortíssimos indícios de esquema contínuo de concessão de benefícios públicos em troca de recursos privados para fins pessoais e eleitorais, que persistiria por mais de vinte anos no setor de portos, vindo até os dias de hoje”. Por isso, Érika Santos voltou a ocupar um papel central na história, tanto que a Polícia Federal deverá ouvi-la nos próximos dias. O objetivo é entender se a Rodrimar e também o grupo Libra, cujos acionistas financiaram a campanha de Temer em 2014, pagavam propina ao presidente ou a algum de seus assessores desde a década de 90.

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Há três meses, a PF chegou a questionar Temer, em depoimento por escrito, sobre sua relação com Marcelo de Azeredo. Em suas respostas, porém, o presidente não deu nenhuma explicação. Disse apenas que indicou o nome do economista à presidência da Codesp, após consulta feita ao PMDB de São Paulo, e que jamais solicitou que o apaniguado intermediasse “interesse de qualquer espécie”.

A VEJA, Érika confirmou que Marcelo de Azeredo e Temer eram amigos e costumavam encontrar-se com frequência. Em suas respostas por escrito à PF, Temer disse que Érika se retratara das acusações contidas nas planilhas entregues à Justiça e selara um acordo com o ex-presidente da Codesp, encerrando o litígio. A blogueira, por tudo isso, é considerada a testemunha que pode unir o passado e o presente no Porto de Santos, mas ela não parece ter disposição para fazê-lo. “Eu não vou expor ninguém agora”, disse Érika. “O Temer está aí, milionário. Está todo mundo milionário (…) As pessoas querem saber do Temer e de pessoas que estão milionárias, felizes da vida. E que nada vai acontecer com elas”, frisou a blogueira, enquanto se despedia da reportagem de VEJA e entrava no metrô. “Quem está impune está impune.” Poucos minutos depois, ela mandou um recado por uma rede social. Postou uma foto sua acompanhada de uma frase de autoria do psiquiatra Augusto Cury, o maior best-seller brasileiro da década: “O passado é uma cortina de vidro. Felizes os que observam o passado para poder caminhar no futuro”.


“Está todo mundo milionário”

Érika Santos manteve silêncio por quase vinte anos. Em 2001, ela estava se separando do economista Marcelo de Azeredo, que foi presidente da empresa que administra o Porto de Santos, e resolveu denunciar um esquema do ex-companheiro com “caixinhas” e “propinas”. Depois da acusação, formalmente apresentada à Justiça, ela acabou fazendo um acordo extrajudicial, cujos termos permanecem desconhecidos, e disse que a denúncia foi feita à sua revelia — o que é altamente improvável. Desde então, Érika nunca mais tocou no assunto. Agora, em conversa com o repórter Thiago Bronzatto em Paris, ela afirma que há muito tempo “todo mundo já sabe a verdade” , demonstra mágoa de ter sido a “única prejudicada” e diz que, com o ressurgimento do caso, teme prejudicar-se outra vez. A seguir, a conversa com VEJA.

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A senhora se tornou uma importante testemunha na investigação que apura se o presidente Michel Temer recebeu propinas de empresas que operam no Porto de Santos… Eu não vou expor ninguém agora. Todo mundo já sabe a verdade há muito tempo sobre tudo. Essa é uma história superantiga. Todo mundo já teve acesso a isso. Por que estão falando disso agora?

A Polícia Federal pediu acesso às provas que a senhora entregou à Justiça em 2001, que revelam um suposto esquema de “caixinhas e propinas” no Porto de Santos envolvendo Temer.  Tá bom. Essa história é mais antiga que minha avó.

A planilha revela repasses de dinheiro de empresas do Porto de Santos, e a polícia desconfia que os beneficiários sejam Temer, o coronel João Baptista Lima e o seu ex-companheiro Marcelo de Azeredo… Por que vocês não pegam a planilha e vão atrás? Por que tem que ser comigo? Não tenho o que falar mais sobre essa história…

Depois de entregar a planilha à Justiça, a senhora acabou fazendo um acordo extrajudicial com seu ex-marido e desistiu do processo. Quais foram os termos do acordo? Não fui eu que entreguei aquela planilha.

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Os seus advogados daquela época disseram que foi a senhora que entregou a planilha…  Imagina, eu não estava no Brasil. Eu estava em Los Angeles. Esse advogado entregou esse material sem a minha assinatura. Por isso é que, depois, retirei a ação. Eu não sei onde ele arrumou aqueles documentos. Alguém deve ter pago a ele. Não fui eu. Ele que montou um monte de documentos. Ele fez uma ação para me incriminar. Só me prejudicou.

A senhora tinha conhecimento da participação de Temer e do seu ex-marido num esquema ilícito no Porto de Santos? Eu não posso falar. Como é que eu vou saber? Eles eram amigos. Jantavam juntos…

Nesses jantares, alguma vez se ouviu menção a algum esquema clandestino? Claro que não. Eles iam falar isso na minha frente?

Nada que motivasse uma suspeita da sua parte? Ele (Temer) é macaco velho. Eles eram macacos velhos.

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Seu ex-companheiro comentou alguma coisa sobre o Porto de Santos com a senhora? Eu era uma menina de 19 anos, casada com o Marcelo, que tinha dez anos a mais que eu… Nessa história, só os mais fracos é que se prejudicam…

A senhora está disposta a revelar o que sabe para esclarecer essa investigação? Quem está impune está impune. Depois que me separei, fui trabalhar como vendedora de loja. Fui fazer a minha carreira sozinha, sem ajuda de ninguém. E cada vez que essa história começa a reaparecer ou me mandam embora ou me prejudicam.

A senhora foi prejudicada? Eu fui a única prejudicada nessa história. O Temer está aí, milionário. Está todo mundo milionário. Meu pai morreu, minha mãe é paralítica e está em cadeira de rodas. Sou eu que cuido dela. Eu me separei do Marcelo sem praticamente nada. Nem minhas roupas ele queria devolver. De lá para cá, foram muitos anos de trabalho para eu estar aqui hoje. Mas isso não interessa para ninguém. As pessoas querem saber do Temer e de pessoas que estão milionárias, felizes da vida. E nada vai acontecer com elas.

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576

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