O advogado Francisco Di Angellis de Morais transitava com desenvoltura nas altas rodas da sociedade e da política cearense. Na noite de 6 maio, ele chegava em casa, num bairro de classe média de Fortaleza, quando foi surpreendido por dois homens encapuzados em uma motocicleta. Um deles, que estava na garupa, disparou dez tiros. As balas acertaram as pernas, os braços, o tórax e o abdômen do advogado, que ainda conseguiu caminhar alguns passos, pegar o celular e tentar fazer uma chamada. “Por que vocês fizeram isso comigo?”, balbuciou, antes de tombar. Fortaleza é uma das capitais mais violentas do país. Somente neste ano, já foram registrados mais de 450 homicídios na cidade — em sua maioria, crimes envolvendo a disputa entre facções de traficantes de drogas. O assassinato de Francisco Morais passa distante desse enredo convencional.
A polícia já desvendou uma parte do mistério, prendeu os executores e o suposto mandante. De acordo com as investigações, o advogado foi morto porque estava extorquindo um empresário que prestava serviços de saúde a municípios do Estado. O que parecia um acerto de contas paroquial, no entanto, ganhou contornos de escândalo. Conforme revelou um dos acusados, na origem da trama que terminou com a morte do advogado estaria um esquema de recolhimento de propina que tem no topo um deputado federal. O esquema funcionaria da seguinte maneira: o governo federal libera verbas para as prefeituras aplicarem em obras e programas de saúde nos municípios indicados por emendas apresentadas pelos parlamentares no Congresso Nacional. Parte desse dinheiro seria desviada para outros fins — e, principalmente, para o bolso de alguns.
Apontado como mandante do crime, o empresário Ernesto Barroso contou aos policiais que foi procurado pelo deputado federal Júnior Mano (PL-CE) antes de ser chantageado. Na ocasião, o parlamentar teria lhe pedido dinheiro, uma espécie de taxa de conveniência pela liberação dos recursos em Brasília. Barroso contou que se recusou a pagar a propina e, por conta disso, um site ligado ao parlamentar começou a publicar notícias insinuando que ele, um ex-motorista de ambulância, teria enriquecido após montar uma cooperativa que prestava serviços a prefeituras beneficiadas com o dinheiro das emendas. O empresário disse ainda que, após as publicações, procurou Júnior Mano para tentar resolver o impasse. Foi orientado então a conversar com o advogado Francisco Morais, que se apresentou como representante do site e exigiu o pagamento de 1,5 milhão de reais para retirar a notícia do ar, além de um pedido de desculpas que deveria ser dirigido diretamente ao parlamentar.
Em seu depoimento, Barroso confirmou que cedeu à chantagem, negociou uma diminuição no valor, entregou 800 000 reais ao advogado e, conforme havia sido combinado, as notícias foram retiradas do ar. Apesar de admitir a extorsão, negou ser o mandante do crime. Os investigadores, porém, reuniram provas de que o empresário contratou dois ex-policiais militares para matar Francisco Morais. Uma das evidências mais contundentes são imagens de uma câmera de segurança do dia em que Barroso e Morais se encontraram numa padaria de Fortaleza para sacramentar o acerto, uma semana antes do assassinato. No exato instante em que o dinheiro era entregue ao advogado, os dois policiais apontados como executores foram flagrados instalando um rastreador no carro de Morais. A partir daí, os agentes reconstituíram os passos de todos os envolvidos, descobriram que eles monitoraram o advogado por GPS e esperaram o melhor momento para emboscá-lo.
Membro da Comissão Mista de Orçamento do Congresso, Júnior Mano está em seu segundo mandato. Ex-coordenador da bancada do Ceará, ele foi um dos campeões de destinação de recursos para o estado no ano passado, especialmente as emendas do chamado orçamento secreto — uma artimanha pela qual o governo federal enviava o dinheiro aos municípios sem que se soubesse o nome do parlamentar que indicou. Neste ano, municípios cearenses já receberam 24 milhões de reais em emendas de autoria do deputado. Em 2021, foram quase 35 milhões apenas para a cidade de Nova Russas, que tem como prefeita Giordanna Mano, mulher do deputado. O casal já foi condenado pela Justiça Eleitoral por abuso de poder econômico e compra de votos. Eles, porém, continuam ocupando seus respectivos cargos depois de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anular a decisão anterior. Mano, de acordo com a polícia, esteve no local do crime logo depois do assassinato. Ele e o advogado Francisco Morais eram próximos. Indagado pela reportagem de VEJA sobre as acusações, o deputado enviou à redação a seguinte nota: “A referência a meu nome não encontra nenhum respaldo no contexto probatório, tratando-se de uma versão isolada, contraditória e inverídica apresentada pelo acusado, com objetivos políticos de ofuscar o grave crime pelo qual está preso e respondendo perante a Justiça Criminal”. As investigações prosseguem e precisam esclarecer quem está dizendo a verdade nesse enredo escabroso.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862