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‘O governo vai vir para cima da gente’, diz moradora de ocupação

Habitantes de prédio ocupado pelo MSLM no Centro de São Paulo têm receio do que pode acontecer com eles após a tragédia

Por Marcella Centofanti
Atualizado em 3 Maio 2018, 09h35 - Publicado em 3 Maio 2018, 07h41

O desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no Centro de São Paulo, na madrugada de terça-feira, está deixando moradores de outras ocupações apreensivos. Eles temem que, por causa da tragédia no Largo do Paissandu, a prefeitura feche o cerco às ocupações irregulares da cidade. “O governo já não gosta da gente. Agora vai vir pra cima para e tirar todos nós [dos prédios]”, afirma Maria Aparecida Santos, 61 anos. “Fiquei sabendo que o prefeito disse que nós somos todos ladrões”, disse, referindo-se à declaração do ex-prefeito João Doria de que o prédio do Largo Paissandu abrigava uma facção criminosa.

Cida, como ela se apresenta, é moradora e porteira de um imóvel de 14 andares ocupado por 82 famílias sem-teto na Rua Benjamin Constant, a um quarteirão do Largo São Francisco. Durante o dia, é ela quem aciona o portão eletrônico que controla a entrada e saída do Edifício Andrade, camuflado em meio a um grafite e várias pichações na fachada. Cida vê quem toca a campainha por meio de um monitor, que reproduz a imagem da câmera instalada do lado de fora do prédio. Atrás de sua mesa, uma cruz emoldurada com luzes de LED roxas enfeita a parede.

Cruz de led decora o saguão do Edifício Andrade
O saguão do Edifício Andrade: cruz de LED como decoração (Marcella Centofanti/VEJA.com)

O saguão do Edifício Andrade está movimentado desde que “o prédio de vidro”, como se referem ao imóvel do Largo do Paissandu, caiu. A cada 15 minutos, mais ou menos, chega alguém com donativos. Alimentos, garrafas de água e produtos de higiene pessoal são armazenados no corredor de entrada e em uma espécie de salão contíguo ao hall. A montanha de roupas passa de 2 metros de altura. “Nós oferecemos ajuda para guardar as doações. Tem muita coisa sendo desviada”, esclarece a porteira.

A ocupação da Rua Benjamin Constant é liderada pelo Movimento de Luta Social por Moradia (MSLM), o mesmo que comandava a do Largo do Paissandu. Cinco famílias do prédio que ruiu foram para lá. A vendedora ambulante Ersimone Freire Rosa, 33 anos, mora no local com o marido, carroceiro, e os oito filhos, de 11 meses a 15 anos de idade. “É óbvio que eu preferia ter uma casa minha, mas ninguém quer alugar um imóvel para uma mulher com oito crianças. Aqui, pelo menos, sei que posso sair pra trabalhar e deixar meus filhos em segurança”, afirma, apontando para uma vizinha idosa que toma conta dos pequenos quando ela se ausenta.

A maioria dos moradores trabalha. Por volta das 16h30, dois deles retornam juntos para casa, depois de passar o dia vendendo água e produto de limpeza na rua. Adão Moreira, de 54 anos, fabrica uma “pasta limpa tudo”, comercializada a 10 reais. Dela tira o seu sustento. Ele vive só em um cômodo de aproximadamente 5 x 3 metros, mobiliado com um colchão de solteiro no chão, um fogão, uma mesinha e alguns caixotes. A divisória para o quarto do lado é de madeirite. A fiação elétrica ele mesmo fez, assim como o encanamento do banheiro que divide com o vizinho. O chuveiro está improvisado em um cano.

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Colchão no chão e improviso: um dos quartos da ocupação
Colchão no chão e ‘puxadinho’ de luz: um dos quartos da ocupação (Marcella Centofanti/VEJA.com)

Há um mês, Adão levou para o prédio um novo inquilino, Taciano Sercondes da Silva, de 21 anos. O jovem desembarcou em São Paulo vindo de Recife, na esperança de encontrar um emprego. Os 200 reais que trouxe no bolso acabaram antes que ele achasse uma fonte de renda, e o pernambucano foi parar em um acampamento na Moóca. Depois de conhecer Adão, mudou-se para o Edifício Andrade, onde mora em um cômodo sem eletricidade de no máximo 3 x 2 metros, equipado com uma cama de solteiro, uma mesinha e um gaveteiro. “Essa não é a vida que sonhei. Eu imaginava arrumar um emprego rapidamente, conseguir uma casa e conhecer uma boa esposa”, afirma, com os olhos marejados.

Assim como Taciano, a artesã Roseli Augusto Barbosa, 48 anos, sonhava com uma moradia própria. Inscreveu-se em um programa da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), mas foi recusada por não ter renda suficiente. Seu marido, o porteiro desempregado Marcos Roberto, 43 anos, acessa o site da empresa para comprovar a informação. “Uma pessoa como eu jamais vai conseguir financiamento habitacional”, diz Roseli.

O casal Marcos e Roseli, moradores do prédio no Centro de SP
Roseli, ao lado do marido, Marcos: “Jamais vou conseguir financiamento habitacional” (Marcella Centofanti/VEJA.com)
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Em outro apartamento, dividido em três cômodos por tapumes de madeira e lençóis, uma mulher de 43 anos está acamada em consequência de um AVC que comprometeu seus movimentos e a fala. Um câncer lhe tirou um olho e a baixa imunidade causada pelo vírus da aids abriu as portas para uma infecção por toxoplasmose. No dia em que a reportagem esteve em sua casa, ela era cuiada pela filha, uma adolescente de 14 anos, grávida.

Embora vivam em imóveis invadidos, os moradores pagam uma “taxa de manutenção”, assunto que procuram evitar. “É mentira que pagavam 500 reais de aluguel lá [no Edifício Wilton Paes de Almeida]”, diz Cida. Segundo ela, na Benjamin Constant, a taxa é de 50 reais. Na condição de anonimato, no entanto, residentes disseram pagar até 250 reais por mês.

Taciano na porta do seu quarto, que não tem eletricidade
Taciano na porta do seu quarto, que não tem eletricidade: sonho de prosperidade não se concretizou (Marcella Centofanti/VEJA.com)

É verdade que o condomínio, se é que se pode chamar assim, tem despesas. Cida enumera: 2 porteiros fixos, 2 porteiros folguistas, 2 ascensoristas, 1 faxineira, 1 pessoa para manutenção, além de produtos de limpeza. Contas de água e luz não são pagos – o serviço é na base do ‘gato’. A porteira, que recebe 1.200 reais por mês pelo trabalho, desconversa quando o assunto é cobrança. Diz não saber quem coleta as taxas de manutenção e conta que seu salário é pago pelo MSLM. O soldo é entregue por uma pessoa manualmente, em um envelope. “Eu não ganho milhões. Se eu sair daqui, não tenho condição de pagar um aluguel nem na periferia”, diz Cida. “Podemos não ter a estrutura de um prédio particular, mas pelo menos um humano mora aqui com dignidade.”

O banheiro do edifício funciona com encanamento improvisado
Um dos banheiro do edifício: encanamento improvisado (Marcella Centofanti/VEJA.com)
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