Oruam usa a fama para abrir uma trilha perigosa de glorificação da violência
Filho de Marcinho VP, bandido condenado a mais de 48 anos de prisão, o rapper tenta injetar 'soft power' na bandidagem
No fim de setembro, depois de 69 dias preso no Complexo Penitenciário de Gericinó, no Rio de Janeiro, o rapper Oruam foi recebido como um ídolo. Uma multidão de fãs o esperava na porta do presídio e, carregado nos ombros, o cantor desfilou entre aplausos, gritos e flashes. Poucas horas depois, de tornozeleira eletrônica, Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, seu nome de batismo, lançou o clipe Freestyle Depois da Cadeia, entre os mais acessados no YouTube, com as imagens de sua saída e um refrão provocativo: “Cheguei pra enterrar vocês”. Músico de sucesso, Oruam, 25 anos, é filho de Márcio Nepomuceno, o Marcinho VP, preso há quase três décadas e chefe histórico do Comando Vermelho. Como tal, o rapper tem usado a popularidade para azeitar uma engrenagem mais ampla destinada a suavizar e elevar a imagem do pai e do mundo do crime em geral — mal comparando, uma injeção de soft power na bandidagem.
Oruam é investigado por acusações variadas — teria, com amigos, atirado pedras contra um delegado, ato qualificado de tentativa de homicídio, e estaria envolvido com o tráfico de drogas. Mal ele saiu da prisão e já usou as redes como palco para fazer ecoar versos em defesa própria, do tipo: “O Estado massacra demais / Prenderam só um menino que estava parecido com o pai”. Suas letras frequentemente glorificam práticas criminosas (“Bandido que é bandido é sempre respeitado”, diz em 22 Meu Vulgo), reforçando símbolos e narrativas associados à delinquência e tentando dar uma aura de normalidade à violência nas favelas.
Ao longo da história, em muitos momentos o crime no Rio foi tratado com conivência, e isso gerou evidentes resultados deletérios. O que mudou agora é a amplitude do apelo e sua reverberação nas redes pela boca de “artistas” admirados — exatamente o caso de Oruam e sua cruzada por “justiça” para o pai, que, segundo ele, não comanda quadrilha alguma. No ano passado, apresentando-se no festival Lollapalooza, ele exibiu uma camiseta com a foto de VP e a palavra “Liberdade”. Os fatos o desmentem, com provas de sobra. Acusado de tráfico, lavagem de dinheiro e homicídio, Marcinho VP acumula penas que somam mais de 48 anos de prisão. Em setembro, um novo mandado foi expedido contra ele, após investigação da Polícia Civil apontá-lo como integrante de um esquema de roubo e receptação de veículos para financiar o CV. Em nota, sua defesa diz que ele não pode ser responsabilizado por fatos externos estando preso.
De acordo com o Ministério Público, VP controla da cadeia o Complexo da Penha, um conglomerado de dezenas de favelas na Zona Norte carioca, onde seu bando mantém uma das maiores estruturas de tráfico de drogas do estado. Indiferente à extensa ficha policial do patriarca, Oruam e todo o clã Nepomuceno se empenham em um esforço para humanizar a figura do bandido. Nas redes, a mulher de VP, Márcia Gama, que tem mais de meio milhão de seguidores, posta declarações de amor ao marido encarcerado e exibe imagens criadas por inteligência artificial que o mostram livre, sorridente em família e com ar de herói. A filha, Débora Gama, cantora gospel com 600 000 fãs nas redes, faz do pai personagem de fé. Ela o descreve como “um compositor maravilhoso” a quem “Deus dá canções incríveis”, que ela própria grava.
A engrenagem familiar inclui ainda a mãe de VP, Maria Auxiliadora, e a irmã, Silvana Santos, que se apresentam como missionárias de uma certa Academia Brasileira de Letras do Cárcere, cujo propósito é “oferecer uma plataforma para que os detentos compartilhem suas histórias, contribuindo para a diversidade e a riqueza da literatura nacional”. Marcinho ocupa a cadeira número 1, autor de quatro livros. Silvana considera o irmão “preso político” e diz que o Instagram dele, tocado pela família, com 136 000 seguidores, “mostra que é humano, não o bicho que pintam”. “Dentro da comunidade, esse tipo de glamorização do crime serve para recrutamento de jovens. Fora dela, cria um falso apelo de banditismo social”, diz o coronel Alessandro Visacro, especialista em segurança. Com seu cabelo vermelho vivo (cor do CV) e letras que pregam desordem (“nós vai tacar fogo na cidade”, diz uma delas), Oruam virou o expoente atual da apologia ao crime disfarçada de arte da periferia.
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2025, edição nº 2967







