Principal organização criminosa do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC) tem um antigo histórico de ataques ao Estado. Há exatas duas décadas, em março de 2003, o assassinato do juiz-corregedor dos presídios, Antonio José Machado Dias, em uma emboscada nas ruas de Presidente Prudente (SP), tornou-se o primeiro atentado cometido por um grupo criminoso a uma alta figura do Judiciário no país. O episódio inaugurou a política de terror público, que ganhou escala três anos depois, quando São Paulo e outras cidades foram submetidas a uma espécie de toque de recolher depois que a facção empreendeu por dias uma série de ataques motivada pela transferência de seus chefes para presídios com maior dificuldade de comunicação externa. A onda de violência, que incluiu rebeliões em penitenciárias, deixou 564 mortos, sendo 59 agentes de segurança pública, como policiais, bombeiros e funcionários do sistema prisional. Nos últimos anos, a tática da confrontação aberta com o poder público estava interrompida, até que na quarta 22 a Polícia Federal desbaratou a tempo um dos planos mais ousados dos bandidos, que incluía sequestro e assassinato de autoridades.
Os criminosos tinham entre os alvos nada menos que um senador da República, Sergio Moro (União Brasil-PR), além da família do ex-juiz e ex-ministro, e um promotor, Lincoln Gakiya, do Ministério Público de São Paulo, um dos órgãos mais envolvidos na investigação do grupo, cujas origens estão no sistema prisional paulista. Ao cumprir determinação da juíza Gabriela Hardt, da 9ª Vara Federal de Curitiba, a PF prendeu nove acusados em São Paulo, Paraná, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Rondônia. O motivo seria mostrar contrariedade com o sistema rigoroso de visita aos presos, que atinge especialmente a cúpula da facção, abrigada em presídios de segurança máxima. A irritação com Moro é atribuída ao seu papel na transferência de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, o principal líder do grupo, para o presídio federal de Brasília, em 2019, quando ele era ministro da Justiça e Segurança Pública, no governo Jair Bolsonaro. A política de Moro envolveu outras dezenas de membros do comando da falange criminosa, que passaram a ter dificuldades para manter contato com aliados externos.
A investigação sobre o plano de retaliação do PCC começou quando, em meados de 2022, o promotor Gakiya interceptou conversas suspeitas durante sua atuação rotineira no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) — ele investiga a facção há mais de vinte anos. Chamou sua atenção o fato de integrantes da quadrilha conversarem sobre uma campana em frente à residência do ex-ministro. Ele alertou o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mario Sarrubbo, e encaminhou o caso à PF do Paraná. A partir de então, Moro reforçou a sua escolta. A ideia dos criminosos era sequestrar o senador ou um familiar próximo e negociar a troca por um preso, em especial Marcola — que, aliás, foi condenado a 29 anos de cadeia por ter sido, mesmo atrás das grades, o mandante da morte do juiz-corregedor em 2003. “O plano estava pronto e a quadrilha só aguardava a autorização do Marcola para colocá-lo em execução, mas ele não deu o aval”, afirma Gakiya.
A descoberta do plano chocou o país e mexeu com o mundo político. Moro, cuja estrela parecia ter se apagado nos últimos tempos, aproveitou-se do protagonismo: deu entrevistas ao longo do dia, fez um pronunciamento no Senado onde se disse “alarmado” e atribuiu o fato de ter-se tornado alvo ao seu desempenho como juiz e como ministro no enfrentamento do crime organizado. De quebra, apresentou um projeto de lei que tipifica como crime a conspiração e o ordenamento de ataques a agentes públicos. Nas redes sociais, seus apoiadores correram para ligar o episódio à polêmica (e desnecessária) declaração do presidente Lula, dada na véspera, de que, na prisão, só pensava em vingança contra Moro. A narrativa é irresponsável e inverídica, pois a investigação sobre o plano do PCC e os pedidos de prisão aconteceram bem antes disso. “Eu fico espantado com o nível de mau-caratismo de quem tenta politizar uma investigação séria, tão séria que foi feita em defesa da vida e da integridade de um senador de oposição”, disse o ministro da Justiça, Flávio Dino.
Se em um passado recente os governos de São Paulo chegaram a cravar o fim do PCC ou minimizar a sua capacidade de atuação, a expansão recente dos negócios criminosos da facção fez com que a sua influência fosse muito além do território paulista. Com ramificações no Paraguai e na Bolívia e atuando em “consórcios” com coletivos criminosos pelo país, inclusive na Amazônia, o grupo foi crescendo a ponto de a antiga gangue de cadeia tornar-se uma peça importante no tráfico internacional de drogas, com conexões até com organizações da Europa. O plano para atacar autoridades mostra que o grupo representa um risco cada vez maior à sociedade e deve ser enfrentado à altura — como, de forma competente, fez agora a PF.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834