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Os detalhes da ação de auxiliares de Bolsonaro para trazer Rolex ao Brasil

Nos EUA, eles recuperaram e trouxeram de volta o valioso relógio vendido clandestinamente — caso que, em tese, pode até levar o ex-presidente à prisão

Por Daniel Pereira Atualizado em 4 jun 2024, 09h46 - Publicado em 1 dez 2023, 06h00

Desde a derrota na eleição presidencial de 2022, Jair Bolsonaro acumula uma sucessão de reveses. Ele teve os direitos políticos suspensos por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tornou-se alvo no inquérito sobre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro e viu a lista de casos nos quais é investigado crescer no Supremo Tribunal Federal (STF), com a abertura até de uma apuração sobre fraudes em cartões de vacinação. O capitão também sofreu arranhões na autoproclamada fama de vestal — ou “incorruptível”, como gosta de repetir — depois de a Polícia Federal declará-lo suspeito de ser o beneficiário de uma “organização criminosa” que desviou joias do acervo da Presidência da República, tirou-as do Brasil de forma clandestina em voos oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB) e vendeu as peças nos Estados Unidos, revertendo os ganhos financeiros para o ex-presidente. Sigilosa, a investigação sobre as joias têm avançado e complicado a situação jurídica de Bolsonaro e de pessoas próximas a ele, cujas digitais estão cada vez mais nítidas nas simbólicas transações de venda e recompra de um relógio de ouro branco da marca Rolex dado pelo governo da Arábia Saudita, em outubro de 2019, ao então presidente.

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NA SURDINA - Relógio: o presente recebido de autoridades da Arábia Saudita foi vendido nos EUA (./.)

Ao deflagrar uma operação em agosto passado, a Polícia Federal registrou que o Rolex e um outro relógio de luxo, da marca Patek Philippe, foram vendidos em junho de 2022, quando Bolsonaro ainda era presidente, à loja Precision Watches, localizada na cidade de Willow Grove, no estado americano da Pensilvânia, por 68 000 dólares. O negócio foi fechado pessoalmente pelo tenente-coronel Mauro Cid, que era ajudante de ordens e braço direito de Bolsonaro na Presidência. A PF também registrou que, depois de o escândalo das joias vir a público, em março deste ano, aliados do capitão iniciaram uma ofensiva para recomprar e repatriar presentes valiosos comercializados em nome dele, numa tentativa de evitar transtornos ainda maiores com a Justiça. A PF descobriu que Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro, recomprou o Rolex e, por isso, a polícia apreendeu seus telefones celulares e o intimou a depor. O depoimento de Wassef, ao qual VEJA teve acesso, preenche lacunas, esclarece pontos nebulosos e reforça o papel de um personagem no enredo: Fabio Wajngarten, secretário de Comunicação da Presidência na gestão Bolsonaro e um dos advogados do ex-­presidente no caso das joias.

Em uma hora e quarenta minutos de depoimento, Wassef disse de forma enfática que quem lhe pediu para comprar o Rolex e trazê-lo de volta ao Brasil foi Fabio Wajngarten, que justificou o pedido diante da possibilidade de o Tribunal de Contas da União (TCU) determinar a devolução dos presentes recebidos por Bolsonaro. Wassef, segundo ele contou à PF, já tinha uma viagem de férias para os Estados Unidos marcada para março de 2023. Nos dias que antecederam o embarque, Wajngarten teria lhe telefonado e mandado mensagens “constantemente” para reforçar o pedido. Ao pousar em Miami, Wassef foi alvo de chamadas “obsessivas” e “compulsivas” de Wajngarten, devidamente registradas nos celulares apreendidos pelos policiais. Wassef afirmou ainda que aceitou fazer o favor porque Wajngarten se comprometeu a ressarci-lo, o que ainda não teria ocorrido, e porque ajudaria a sociedade brasileira ao devolver um bem à União. “Caso Fabio Wajngarten não lhe devolva o valor, vai processá-lo para reaver essa quantia”, anotou a PF ao tomar o depoimento.

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Além de apontar Wajngarten como o mentor do plano de resgate, Wassef detalhou o passo a passo da recompra do Rolex e de sua repatriação para o Brasil. Conforme já havia declarado publicamente, ele ratificou que pagou o relógio em espécie, com recursos próprios, devidamente declarados. Em 13 de março, dois dias depois de desembarcar em Miami, sacou 35 000 dólares de uma conta bancária, os quais juntou a outros 14 000 dólares que guardava em sua casa em Miami. No dia seguinte, viajou de avião até a Filadélfia e de lá dirigiu por quase duas horas até Willow Grove, onde recomprou o relógio por 49 000 dólares. Cumprida a missão, seguiu viagem pelos Estados Unidos, com passagem inclusive por Nova York, sempre com a posse do Rolex. Em meio ao tour americano, segundo Wassef, Wajngarten pediu que ele voltasse ao Brasil com a joia em mãos, o que se negou a fazer sob a alegação de que era uma pessoa pública e que poderia ser reconhecido. Acrescentou que, se embarcasse com o Rolex, entregaria o relógio à Receita Federal ao desembarcar. Diante do impasse, Wajngarten teria acertado com Wassef que um brasileiro, conhecido do próprio Wajngarten, viajaria com o Rolex dos Estados Unidos para o Brasil.

Ficou combinado que Wassef entregaria o relógio ao tal preposto no estacionamento de uma loja Best Buy em Miami. Assim foi feito, e o emissário de Wajngarten trouxe o bem de volta ao Brasil. De acordo com o depoimento, o portador, cuja identidade Wassef não soube dizer, lhe entregou o relógio em seu famoso sítio de Atibaia, o mesmo em que foi preso Fabrício Queiroz, acusado de ser o operador da rachadinha no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. A odisseia continuou. Três dias depois de receber o Rolex, Wassef repassou a encomenda para Mauro Cid no Aeroporto de Congonhas, momentos antes de o ex-ajudante de ordens embarcar para Brasília. O relógio — que partiu da Arábia Saudita, chegou a Brasília, saiu do país de forma clandestina rumo aos Estados Unidos, passou por Los Angeles, Willow Grove, Nova York, Miami, Atibaia e São Paulo — está hoje sob os cuidados da Caixa Econômica Federal. Conhecido pela lealdade canina a Bolsonaro, Wassef disse no depoimento que não houve nenhuma participação do ex-­presidente na operação de recuperação do Rolex e declarou que Mauro Cid só lhe passou a localização da loja em que estava o relógio. O pedido de recompra e os detalhes da repatriação, fez questão de reforçar, partiram de Wajngarten.

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DEVOLUÇÃO - Wajngarten: ex-secretário foi apontado por Wassef como o mentor do plano de resgate do relógio (Fátima Meira/Futura Press)
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Advogados do presidente em casos distintos, Wassef e Wajngarten são velhos conhecidos. Foi o primeiro que apresentou o segundo a Bolsonaro, no início de 2016, durante um jantar no apartamento do empresário Meyer Nigri, dono da Tecnisa. Depois disso, Wassef — que conheceu o capitão em 2014, quando ele ainda era um deputado do baixo clero — fez diversos movimentos para aproximá-lo de Wajngarten, que acabou sendo incorporado à equipe da campanha presidencial e ao governo. Procurados por VEJA, Wassef e Wajngarten disseram que não comentariam o caso porque a investigação está sob sigilo. Além de advogado de Bolsonaro no caso, Wajngarten foi intimado a depor na condição de investigado e preferiu ficar em silêncio. Nos bastidores, ele nega qualquer participação na operação, diz que soube do caso pela imprensa e que o depoimento de Wassef seria “uma espécie de vingança por ciúmes do acesso dele ao presidente”.

Não será fácil, no entanto, convencer os investigadores dessa tese. Wajngarten já estava no radar da PF porque, entre outros motivos, Mauro Cid mandou um áudio ao ex-secretário de Comunicação da Presidência em 13 de março, um dia antes de Wassef comprar o Rolex: “Cara, nem sabia que você estava no circuito. E eu falei, pô, se não fosse o Fabio nessa guerra toda, o negócio estaria muito mais enrolado”. Segundo a PF, pessoas da confiança de Bolsonaro tentaram vender pelo menos três kits de joias recebidas como presentes de chefes de Estado e autoridades estrangeiras. Em seu acordo de delação premiada, homologado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes e cujos pontos foram antecipados por VEJA, o tenente-coronel declarou ter vendido os dois relógios nos Estados Unidos sob ordens diretas do ex-presidente e repassado o dinheiro, em mãos, para ele. “O presidente estava preocupado com a vida financeira. A venda pode ter sido imoral? Pode. Mas a gente não achava que era ilegal.”

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DEPOIMENTO - Frederick Wassef: o passo a passo da recompra da joia no exterior até a repatriação no Brasil (Wallace Martins/Futura Press)
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As defesas dos investigados pretendem fazer esse debate preliminar — se houve ilegalidade nas transações. A ale­ga­ção é de que não existe uma lei que defina de forma clara e cristalina qual presente deve ir para o acervo público e qual deve ir para o acervo pessoal do presidente, que poderia fazer com ele o que bem entendesse. Argumenta-se ainda que o entendimento adotado pelo TCU em 2016, segundo o qual apenas acessórios como bonés e perecíveis podem ser apropriados pelo presidente de turno (e vendidos), não tem força legal e, por isso, não pode levar à responsabilização de Bolsonaro e de seus aliados sob investigação. Essa tese, caso seja aceita pela Justiça, pode sujeitar Bolsonaro apenas a uma ação de improbidade, ilícito que não prevê pena de prisão, ou enquadrá-lo em um crime menor, como o de peculato culposo, em que também não se tem notícia de condenado à cadeia. Aventado pela Polícia Federal, o crime de peculato, com previsão de até doze anos de prisão, pode ser descartado se ficar comprovado que os investigados não sabiam que estavam cometendo um crime e se repararem completamente o dano, o que tentaram fazer com a operação de resgate.

Um advogado familiarizado com o caso diz também que, se for decidido que as joias não poderiam ser vendidas, haverá um esforço para diferenciar a conduta de quem comercializou o Rolex, e teria cometido um crime, de quem se esforçou para recuperá-lo e devolvê-lo ao patrimônio público, que não estaria sujeito a punição. Por esse raciocínio, nem Wassef nem Wajngarten seriam punidos pela Justiça. Apesar de divulgar uma vida franciscana, Bolsonaro não enfrenta dificuldades financeiras. Só por meio de uma campanha de arrecadação via Pix, levantou cerca de 17 mi­lhões de reais. Sua preocupação real é com o risco de ser preso. Um risco materializado tanto na depredação das sedes dos Três Poderes por bolsonaristas radicais como num Rolex de ouro branco que, ao percorrer diferentes cidades, países e até continentes, ajudou a dimensionar a elasticidade moral do ex-presidente. Só com o avanço das investigações ficará claro se houve imoralidade, ilegalidade, trapalhada — ou tudo ao mesmo tempo.

Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870

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