Os ônibus que circulam por Cuiabá, no Centro-Oeste do país, trazem estampada na lateral uma definição sugestiva: “A capital mais calorosa do Brasil”. O intuito é exaltar — merecidamente, aliás — o caráter cordial e hospitaleiro dos cuiabanos, mas quem lê a frase, suor escorrendo pelo rosto, faz logo outra interpretação: a cidade de Mato Grosso anda, isso sim, quente de fritar o cérebro. Embora termômetros nas alturas tenham sempre feito parte da rotina de quem mora lá, Cuiabá nos últimos meses virou o epicentro do calor extremo no Brasil, com a temperatura batendo em 44,2 graus em 19 de outubro passado, uma marca sem precedentes que a colocou no topo do pódio de ponto mais abrasador do planeta naquele dia. Foi o apogeu de um tórrido processo: entre janeiro e novembro de 2023, o município registrou 87 dias de temperaturas acima dos 40 graus (em 2020, foram 36). “O calor sempre foi uma espécie de patrimônio cultural nosso. Agora também passou a ser um problema do governo”, enfatiza o prefeito Emanuel Pinheiro (MDB).
Na capital mato-grossense, quem pode se refugia no ar-condicionado 24 horas por dia. Quando estão treinando, os jogadores do Cuiabá Esporte Clube são submetidos a uma medição de hidratação a cada dois dias. Até uma das principais atrações turísticas, o Show das Águas, que mistura luz e som, teve de ser suspensa porque o nível do lago baixou demais. Uma sobreposição de fatores — o fenômeno El Niño, que estará no ápice neste janeiro, o aquecimento dos oceanos e os implacáveis efeitos das mudanças climáticas — está fazendo a terra ferver não só em Cuiabá, mas no mundo todo, criando as condições para converter este verão brasileiro, iniciado em 22 de dezembro, no mais quente da história. “Junto a temperaturas anomalamente altas, teremos eventos climáticos extremos, como inundações, secas e ondas de calor”, afirma Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e membro do painel intergovernamental de mudanças climáticas da ONU.
Em 2023, a canícula se tornou o novo normal das previsões meteorológicas. O serviço climático europeu Copernicus confirmou ter sido o ano mais quente da Terra, pelo menos desde que as medições existem. “Isso é só o começo. A era do aquecimento global acabou e começou a era da fervura global”, profetiza o secretário-geral da ONU, António Guterres. A temperatura média da superfície da Terra ficou 1,4 grau acima da do período pré-Revolução Industrial, superando o recorde de 2016 e esbarrando no limite de aquecimento aceitável estipulado no Acordo de Paris, 1,5 grau. “O calor escaldante que vem afetando a América do Sul desde agosto representa um dos eventos mais extremos que o mundo já viu, derrubando todos os recordes”, ressalta o climatologista Maximiliano Herrera, um dos maiores especialistas mundiais no rastreio de temperaturas extremas por todos os continentes.
Que o digam os habitantes de Cuiabá, apelido “Cuiabrasa”. “Às 7 da manhã, quando muitas vezes já passa dos 30 graus, o interior do carro está fervendo”, diz a servidora pública Ieda Barros, 45 anos, que evita a todo custo se locomover a pé e organiza sua rotina para não precisar circular em locais sem refrigeração. O calor abafado na cidade, que tem cerca de 650 000 habitantes e cresceu de forma desordenada, é daqueles que faz as pessoas se sentirem constantemente em uma sauna. “Só treino à noite. É humanamente impossível se exercitar ao ar livre durante o dia. Quem arrisca acaba passando mal”, atesta a comerciante e corredora Ana Cláudia Franchini, 42 anos. Os impactos da fervura global no organismo são, de fato, implacáveis. Um recente relatório da Organização Mundial da Saúde, em parceria com a Organização Mundial de Meteorologia, mostra que o calor mata 15 milhões de pessoas por ano no mundo.
A letalidade das temperaturas excessivas é, na maior parte das vezes, indireta. Elas agravam doenças preexistentes — diabéticos, obesos, portadores de doenças respiratórias, renais e cardíacas são mais suscetíveis —, mas seus efeitos costumam ser negligenciados. Os primeiros sinais de risco à saúde são pele avermelhada, cansaço, tontura, náuseas e confusão mental. Em qualquer idade e condições, recomenda-se atenção redobrada sempre que a temperatura do ar supere a do corpo (cerca de 36,5 graus). A reação natural do organismo, nesse caso, é uma redistribuição do fluxo sanguíneo, transferindo o calor dos músculos para a pele, o que faz suar. Esse processo obriga o coração a trabalhar com mais força e rapidez, aumentando o risco para cardíacos. O cérebro, os rins e vários órgãos também sofrem com menos sangue e oxigênio. Se a temperatura corporal continuar subindo, a pessoa pode colapsar e morrer devido a danos cerebrais e falhas dos órgãos.
Divulgar alertas nesse sentido deixou de ser providência esporádica e se tornou uma constante nos últimos e calcinantes tempos. Em meio às nove ondas de calor — termômetros acima da média por mais de cinco dias consecutivos — que assolaram o Brasil em 2023, registros do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram que as temperaturas atingiram 40 graus ou mais nada menos do que 1 248 vezes, em vários municípios. Na notória Cuiabrasa fez quase 42 graus no inverno e 45 em outubro (com sensação térmica perto de 60). Ondas de calor, por sinal, entraram em ritmo de marolinhas por aqui — o número de dias de canícula insuportável por ano passou de sete, em 1961, para 52, em 2020.
No forno da capital mato-grossense, a quentura levou à redução da carga horária dos agentes da limpeza pública, à ampliação da climatização na rede municipal (152 das 170 escolas têm ar-condicionado) e à instalação de pontos de ônibus refrigerados. “Além do impacto das mudanças climáticas, Cuiabá tem uma desvantagem geográfica: situa-se afastada do litoral, bem no centro do continente e em uma baixada, com pouca circulação de vento”, explica Francisco de Assis Diniz, ex-diretor do Inmet e consultor climático. Não por acaso, o Brasil Beach, empreendimento com a maior praia artificial dentro de um condomínio no país — 20 000 metros quadrados —, virou referência de bem viver. “Qual cuiabano não sonha com praia? O calor piorou tanto que a gente acha 38 graus fresco”, diz a corretora Cristiana Nobre, 36 anos, ao lado da filha, Lavínia, 8, e do marido, Pierre, 41, donos de um apartamento no local.
Como nada mais é exatamente como antes diante dos inexoráveis impactos das mudanças climáticas, os prognósticos são de um verão do tipo prova de fogo. As temperaturas acima da média em diversos pontos do Centro-Oeste e do Sudeste resultarão em temporais mais catastróficos na estação. Isso, junto com os bloqueios frequentes das frentes frias vindas da Argentina, Paraguai e Uruguai, deve castigar ainda mais a Região Sul com enchentes. Na outra ponta, é provável que a seca histórica no leste da Amazônia, que provocou uma mortandade de botos-cor-de-rosa, se estenda por tempo indeterminado.
O clima sufocante em Mato Grosso e no vizinho Mato Grosso do Sul afeta hábitos e costumes. “Vivo com a sombrinha na bolsa, mas não é para a chuva, é por causa do sol. Mesmo quem é da terra, como eu, não aguenta esse calorão”, justifica Lindalria dos Santos, 36 anos, funcionária de um hospital local, acompanhada da filha Patrícia, 16. A temporada chuvosa, que normalmente começa em meados de outubro, ainda não tinha iniciado até o fim de dezembro. A estiagem, somada às temperaturas recordes, vem atrasando o plantio no estado que mais produz soja no mundo. A situação de pequenos agricultores nos arredores da capital, como Lucindo Evangelista, 44 anos, é mais crítica ainda. “Está uma calamidade. Perdi 80% dos pés de alface hidropônica. Com o calor exagerado, a água que irriga o cultivo chegou a 47 graus e cozinhou as raízes”, relata ele, desolado. Além da agricultura, as alterações climáticas provocam um efeito em cascata nas condições de trabalho, no comércio e nos investimentos que deságuam impiedosamente na economia global — calcula-se que elas tenham provocado uma queda de 0,6% no PIB mundial este ano. Uma pesquisa da revista científica Nature contabiliza em 384 milhões de dólares por dia o custo dos eventos extremos do clima no planeta.
Outro efeito das temperaturas escorchantes na terra e nos oceanos — onde o calor das águas subiu até 5 graus — é o rastro de transtornos e destruição que deixam pelo mundo. O mais letal incêndio florestal da história dos Estados Unidos, ocorrido no Havaí no ano passado, dizimou uma cidade inteira e deixou 99 mortos. No Canadá, cidades tiveram de ser evacuadas na trilha de fogo que carbonizou 18,5 milhões de hectares (seis vezes mais do que há dez anos). Enquanto Grécia, Bulgária, Turquia e Líbia penaram sob grandes inundações, secas implacáveis se espraiaram por regiões da África e da América Central e do Sul. “Não há nenhuma pessoa ou economia do planeta intocada pelas mudanças climáticas. Por isso precisamos parar de estabelecer recordes indesejados, como o de emissões de gases de efeito estufa”, alerta Inger Andersen, diretora-executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Sob impacto do calorão e suas consequências, governos e organizações vêm buscando meios de frear o aquecimento e mitigar o efeito do caos climático. Recém-encerrada em Dubai, a COP28, principal conferência da ONU sobre o clima, quebrou uma barreira histórica ao incluir em seu comunicado final o propósito de “implementar a transição” para outras fontes de energia que não os combustíveis fósseis, os maiores vilões do aquecimento global. Nova York estuda fechar os pontos nevrálgicos de Manhattan a carros por força de pedágios caros, como já acontece em Londres, Paris e outras capitais europeias, priorizando o trânsito de bicicletas. Na escaldante Cuiabá, a administração prevê a criação de dois novos parques e vem fazendo o plantio de 20 000 mudas por ano, sobretudo nas chamadas “ilhas de calor”, conjuntos habitacionais cercados de concreto onde a temperatura fica até 10 graus acima da do resto da cidade. “O clima não vai mudar, já mudou. Os impactos climáticos estão aí e são uma amostra do que ainda pode vir mais intenso no futuro”, reforça o climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Ações governamentais e da sociedade para conter a fervura global não são mais uma opção. São uma imposição.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874