Os oito rostos da tragédia
A vida, os planos e os sonhos brutalmente ceifados pelos matadores de Suzano
Quando massacres com atiradores em escolas eram noticiados — como o do bairro do Realengo, no Rio de Janeiro, em 2011 —, a coordenadora pedagógica Marilena Ferreira Vieira Umezu costumava interromper a revolta dos interlocutores com comentários de compaixão. “Ela dizia não acreditar na maldade dos autores dessas tragédias. Achava que algo muito errado havia acontecido com quem atirou, mas que toda criança, todo adolescente tinha conserto”, conta Vinícius, de 32 anos, o segundo de seus três filhos — o caçula tem 29 anos e o mais velho, de 38, trabalha na China. Marilena completaria 60 anos em agosto. Tinha 50 quando concluiu a graduação em filosofia na faculdade católica Paulo VI, na cidade vizinha de Mogi das Cruzes. Até então, ela se dividia entre os cuidados da casa e as atividades na Paróquia São Sebastião, onde ajudava os sacerdotes nos dias de missa e era catequista. Sempre se deu muito bem com adolescentes, mais até que com crianças, e por isso decidiu retomar os estudos e se diplomar professora. Tinha receio de ter passado da idade para acompanhar o pique dos jovens calouros, mas chegou até o fim, foi aprovada no concurso para lecionar na rede estadual paulista e se efetivou na Escola Estadual Raul Brasil, perto de onde morava. Em poucos anos, tornou-se coordenadora pedagógica. “Ela daria a vida por aquela escola. E, no fim, foi o que aconteceu”, diz o filho. Segundo investigações preliminares, Guilherme Taucci Monteiro, o atirador, entrou no colégio com a desculpa de tentar se rematricular, antes de ser encaminhado à coordenadoria. Marilena foi uma das primeiras atingidas pelas rajadas do revólver calibre 38. Quando soube que a instituição de ensino havia sido alvo de um atentado, Vinícius teve certeza imediata de que a mãe morrera. “Eu já sabia. Ela teria sido a primeira a entrar na frente das pessoas.”
Vistas de perto, as escolas públicas podem abrigar mais dedicação e ambições do que em geral se supõe. Os alunos das instituições gratuitas representam 85% do total de matriculados no ensino médio do Brasil, mas apenas 35,9% dos que chegam ao ensino superior. Com cerca de 1 000 frequentadores, a Escola Estadual Raul Brasil tenta empurrar as estatísticas positivas para cima: tem desempenho acima da média estadual no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que concilia dados da Prova Brasil e do Censo Escolar, apesar de ter sido uma das mais fracas da cidade na média de notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) nos últimos anos. No prédio funciona um Centro de Estudos de Línguas, onde é possível aprender de graça italiano, alemão, japonês e espanhol. Nesse ambiente, frutificavam sonhos como o de Cleiton Antonio Ribeiro, de 17 anos. No 3º ano do ensino médio, ele tinha planos de prestar vestibular para a faculdade de tecnologia. Era um garoto caseiro, filho de dona de casa e de um funcionário aposentado da prefeitura local. Costumava jogar dominó com familiares e com as crianças mais novas do bairro. Era protetor da mãe, que tem problemas de coluna e colesterol alto. Queria aprender a lutar jiu-jítsu a fim de aperfeiçoar a defesa pessoal e poder cuidar bem dos dois.
Todos os adolescentes assassinados no massacre de Suzano tinham entre 15 e 17 anos e estavam no horário do recreio. Douglas Murilo Celestino, de 16 anos, foi o último a morrer — após ser socorrido com vida, acabou não resistindo a caminho do Hospital de Clínicas Luzia Pinho de Melo. Fanático pelo Corinthians, ele era integrante da Fiel Suzano, torcida organizada do alvinegro na cidade. O sonho do adolescente era ser jogador de futebol, e ele falava em trabalhar duro para comprar, antes dos 25 anos, um apartamento. Vivia com sua mãe, que o criou sem a presença do pai, preso há vários anos. Tinha uma irmã caçula e um meio-irmão mais velho, de ligação paterna. Recebeu educação rigorosa. Havia tanto receio de que enveredasse por caminhos errados que o garoto tinha de pedir autorização “até para ir à esquina”, de acordo com conhecidos, e precisava que um adulto o acompanhasse nas idas aos estádios.
Samuel Melquíades era outro craque reconhecido entre os mais próximos, mas em uma área diferente. Fera em desenhos, chegou a ilustrar um livro infantojuvenil que é vendido em lojas de internet de livrarias de renome como Martins Fontes e Cultura: Como Consertar um Coração Quebrado, da editora Scortecci, de autoria de Adriano Fonseca, que já teve uma obra ilustrada pelo pai de Samuel. Religioso, o garoto era bastante ativo na Igreja Adventista do Sétimo Dia. Colegas contam que era recém-chegado à Raul Brasil. Até 2018, estudara na Escola Estadual Alfredo Roberto, onde se tornou querido e festejado pelo talento artístico — as caricaturas que fazia dos professores eram sucesso com a molecada. Nada que atrapalhasse a boa relação com os docentes. Com a liderança entre os pares e um bom desempenho, virou monitor de classe e representava a turma nos conselhos e discussões com a direção.
Com um ano a menos que Samuel, os amigos Caio Oliveira e Kaio Lucas da Costa Limeira estavam sempre juntos. Caio gostava de pagode e destacava-se no basquete, ainda que não fosse alto. Morava longe do colégio, no bairro São José, e era considerado “bonzinho” pelos conhecidos. Recentemente viajara para o litoral, mas ao chegar lá preferira cuidar de um tio debilitado a ir à praia com os outros. Economizava trocados para comprar sacos de ração e alimentar cachorros de rua. Seu quase xará Kaio chegava diariamente com a mãe à escola, por causa do medo que ela tinha da criminalidade, apesar de morarem a apenas duas quadras dali. Frequentava o culto evangélico nos fins de semana. Santista na infância, tornou-se torcedor do Corinthians, e foi enterrado vestindo a camisa do time. Os dois amigos interagiam o tempo todo no Facebook. Em uma publicação de 16 de fevereiro de 2017, Kaio postou uma imagem ao lado de Caio com a legenda “Parceiro de sempre”. Quase dois meses depois, em 17 de abril, outra foto com a dupla tinha o mesmo reconhecimento: “Parceiro”. Na rede social, eles trocavam provocações e piadas. “Carinha de quem tá em prova”, ironizou Caio quando Kaio publicou uma foto no espelho de um elevador. Os dois estavam lado a lado no momento em que o assassino Guilherme entrou na escola. Foram os primeiros alvejados — inicialmente Kaio, de boné e camiseta com estampa camuflada, depois Caio, que vestia uma roupa cinza. Acabaram morrendo juntos, um sobre o outro, praticamente abraçados.
Pouco antes, Guilherme e o outro matador, Luiz Henrique de Castro, já haviam assassinado o tio de Guilherme, Jorge Antônio de Moraes, irmão de sua mãe. Ele tinha 51 anos e era dono da Jorginho Veículos, loja de compra e venda de carros usados, que funcionava também como estacionamento. O sobrinho trabalhou no estabelecimento até dois anos atrás, e saiu de lá demitido. Fazia aproximadamente três décadas que Jorge tocava o negócio, o que o tornava uma figura conhecida nas redondezas — ele fechava a cara em dias de mau desempenho do Palmeiras. Cultivava hábitos saudáveis mesmo nas incursões à padaria ao lado, aonde levava clientes para tomar vitamina de frutas. Ao ficar sob a mira do revólver, colocou o celular à frente do rosto para se defender. Sua irmã, mãe do assassino Guilherme, compareceu ao seu enterro, feito em local distante do da maioria das vítimas, e pediu desculpas aos presentes.
Além de Jorge e da coordenadora Marilena, houve mais uma vítima maior de idade: Eliana Regina de Oliveira Xavier, de 38 anos. Ela trabalhava como agente de organização escolar, nome atual para o inspetor de alunos. Com a intenção de se tornar professora, cursava atualmente faculdade de pedagogia. Nos corredores, era tida como companheira da garotada — muitas vezes protegia os estudantes das broncas da direção, tentando “acobertar” pequenas travessuras. Em contrapartida, tinha uma autoridade natural sobre eles. Na última hora antes do recreio em que se deu a tragédia, Eliana pediu à turma toda que colocasse os celulares na calha da lousa, para evitar colas durante uma prova de matemática. “Olha, gostei desse iPhone, acho que vou levar para a casa, hein”, brincou, provocando risadas. Quando o sinal para o intervalo soou, Eliana já estava de volta à sua função de controlar quem entrava no colégio e, ali, foi atingida por Guilherme. “Ela fazia tudo pelos alunos”, diz a prima Gabriela Lima, “e também pelos filhos.” Eliana deixou uma adolescente de 16 anos e um garoto de 10, fruto de um casamento encerrado há poucos anos. “Ela era bem divertida, gostava de sair com os mais jovens da família, levar todo mundo para a praia e ouvir música eletrônica e MPB”, lembra. Segundo familiares, defendia ativamente a proibição do porte e da posse de armas e criticava a posição do presidente Jair Bolsonaro a respeito do tema. Quando souberam do tiroteio na escola, alguns desses parentes correram para o local, já prevendo que, “por uma triste ironia”, a funcionária tão atenta à defesa do desarmamento havia morrido vítima de arma de fogo.
O abreviamento de histórias de vida como essas, em meio a um banho de sangue, transporta o choque para além dos muros do colégio. Mais de 5 000 pessoas foram à Arena Suzano, um ginásio recém-inaugurado na cidade, onde se realizou um velório coletivo de parte das vítimas. Em peso, a comunidade da escola. Guilherme Celestino e Gabriel Emídio, ambos de 16 anos, e Davi Gabriel, de 17, todos do 3º ano, conseguiram se esconder dos atiradores. Os dois primeiros estão entre os cerca de cinquenta alunos que uma funcionária da cozinha trancou na copa, travada com um freezer e mesas. Davi se escondeu no banheiro com outros dez. Quando ouviram o primeiro disparo, os três pensaram que fosse uma brincadeira — no ano passado, alguns bagunceiros soltaram bombinhas no colégio. Instantes depois, Gabriel viu Marilena cair no chão. “Ao percebermos o que estava acontecendo, todos começamos a ligar para a polícia e para os nossos pais”, ele recorda.
Quando anoiteceu na quarta-feira do crime, alunos e ex-alunos se reencontravam com tristeza nas ruas, em meio a abraços, lágrimas e desabafos. Eis algumas das frases ouvidas: “Até agora não caiu a ficha”; “Tive uma crise de raiva”; “Ainda não chorei”; “Daqui a pouco o Brasil vai parecer os Estados Unidos”; “Ninguém quer ficar em casa”; “Todo mundo só assiste às notícias sobre isso”. Houve uma missa, e ramos de flores foram depositados junto ao muro do colégio.
Perto da casa de Cleiton, uma menina de 5 anos, de uma família da vizinhança, repetia fragmentos do que ouviu, sem entender direito. “Cadê o filho da tia que está chorando? A amiga da minha irmã morreu com uma bala nas costas. Um menino teve um machado também, né? A minha mãe tem os vídeos das balas”, falava, emendando uma frase atrás da outra. Para os adultos, também não é fácil entender direito o que se passa. Pais cujos filhos sobreviveram não sabiam como reagir. “A gente fica feliz pelo nosso filho que sobreviveu, mas triste porque o dela foi embora”, dizia uma mulher, consternada, olhando para outra mãe, recém-chegada do IML. Eis a definição de uma tragédia.
Colaboraram Lucas Mello, Giovanna Romano e André Siqueira
Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626
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