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Partidos acionaram o STF mais de 800 vezes desde 2018

Apesar das reclamações de intromissão do Judiciário, levantamento feito por VEJA mostra que recorrer ao Supremo virou carta marcada do jogo político

Por Bruno Caniato, Adriana Ferraz Atualizado em 4 jun 2024, 09h26 - Publicado em 20 jan 2024, 08h00

A definição de um marco temporal para a demarcação de terras indígenas foi, talvez, o maior cabo de guerra institucional travado no ano passado. Depois de o STF reconhecer que a tese era inconstitucional, o Congresso aprovou um projeto de lei na direção contrária. O governo Lula vetou então o PL, que foi derrubado por 321 deputados e 53 senadores. Assim que o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), promulgou a lei, no fim de dezembro, cinco partidos governistas (PT, PSOL, Rede, PV e PCdoB) foram ao Supremo para pedir que ela fosse derrubada. Do outro lado, PL, PP e Republicanos entraram com uma ação para pedir o contrário: que a Corte garantisse o que foi decidido pelo Parlamento. Ou seja, por enquanto, vale a posição do Legislativo sobre o tema, mas tudo pode mudar após nova apreciação do STF.

Embora o imbróglio em torno do marco temporal seja bastante ilustrativo, está longe de ser um caso isolado. Levantamento feito por VEJA mostra que recorrer ao STF virou carta marcada do jogo político — desde 2018, os partidos moveram nada menos que 807 ações de inconstitucionalidade para contestar leis aprovadas em plenário, anular decisões do Executivo e do Legislativo ou forçar governantes a agir em casos em que se acreditava estar havendo omissão. Segundo o Supremo, mais de 75% desses processos foram protocolados por partidos de esquerda após terem sido derrotados no Congresso ou terem pedidos negados pela União. Os campeões são PDT, PSB, Rede, PT e PSOL, todos eles da base do governo (veja o quadro).

arte STF

As circunstâncias que motivaram as ações variam. Há muitas solicitações feitas durante a pandemia para obrigar o governo de Jair Bolsonaro a comprar vacinas. Outras ações exigem o uso de câmeras corporais pelas Polícias Militares, o que enfrenta resistência da parte de alguns estados. Há também tentativas de fazer com que o STF imponha uma nova regra legal, que deveria ser discutida no Congresso, como uma ação do PDT que pretende obrigar operadoras de TV por assinatura a incorporar canais abertos em seus catálogos. Embora a esmagadora maioria dos pedidos venha de legendas de esquerda, é possível observar que a recorrência ao Judiciário tende a ser um artifício de quem é oposição — o Novo, por exemplo, protocolou doze processos na Corte desde o início do terceiro mandato de Lula (o que faz dele o campeão na atual gestão), mais do que as oito movidas pelo partido durante os quatro anos da gestão Bolsonaro.

INSATISFEITO - Arthur Lira: com o seu apoio, avança projeto para criar barreira a ativismo judicial de nanicos
INSATISFEITO - Arthur Lira: com o seu apoio, avança projeto para criar barreira a ativismo judicial de nanicos (Suamy Beydoun/AGIF/AFP)
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O entra e sai de partidos no STF contrasta com um discurso adotado pelo Legislativo no fim do ano passado, quando acusou o Supremo, com frequência, de intromissão na principal prerrogativa dos parlamentares, que é legislar. As críticas subiram muito de tom na esteira de decisões da Corte em questões controversas, como o próprio marco temporal e a descriminalização do aborto e da maconha para uso pessoal. Em alguns casos, parlamentares foram ao Supremo para obrigar o Legislativo a discutir alguma coisa. Na última sessão de 2023, o STF, por exemplo, julgou uma ação na qual decidiu que o Congresso estava sendo omisso há anos ao não regulamentar a licença-paternidade e ainda deu dezoito meses para que os parlamentares fizessem o seu trabalho. “O Congresso Nacional, às vezes, quando decide não legislar, está legislando. Não abre espaço para que outros poderes o façam”, disse o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-­AL), no último dia 2 de janeiro, tentando contemporizar a situação. A realidade, porém, mostra que a presença cada vez maior do STF no debate político é fomentada pelas próprias legendas.

Essa estratégia, no entanto, está perto de sofrer um duro revés. Uma ideia que vem ganhando força nos bastidores da Câmara, apadrinhada pelo próprio Arthur Lira, é limitar o número de partidos que podem mover ações de inconstitucionalidade no Supremo — a proposta, inclusive, tem sido discutida com o ministro Gilmar Mendes. Trata-se do projeto de lei 3640/23, de autoria do deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP), vice-presidente da Câmara e candidato a suceder a Lira em 2025. Ele propõe uma espécie de “trava” com base na representação partidária. O texto usa como régua a cláusula de barreira, que restringe o acesso a recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita eleitoral somente a siglas que conquistaram uma votação mínima na última eleição. “Se apenas entidades com alcance nacional podem ter acesso ao Supremo, o mesmo deve ser feito em relação aos partidos”, defende o relator do projeto, Alex Manente (Cidadania-SP).

LOBBY - Barroso recebe deputadas para discutir licença-paternidade: logo depois, STF mandou Congresso regular o tema
LOBBY - Barroso recebe deputadas para discutir licença-paternidade: logo depois, STF mandou Congresso regular o tema (Gláucio Dettmar/Ag. CNJ/.)
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Os alvos são os partidos com poucos deputados, mas muito ativos no Supremo, como Rede e PCdoB, que não superaram a cláusula de barreira, embora tenham mantido seus direitos por terem se juntado em federações partidárias. Se a “trava” for aprovada, a restrição ameaçaria ainda partidos como Novo. A turma, naturalmente, tenta barrar a iniciativa. “A prerrogativa dos partidos políticos de acionarem o STF para o controle constitucional é uma garantia assegurada pela própria Constituição”, afirma o coordenador nacional da Rede, Giovanni Mockus. A presidente nacional do PSOL, Paula Coradi, fala em retrocesso. “A democracia ganha com os questionamentos”, argumenta. O Novo, curiosamente, se divide em torno do tema. “As ações tornaram-se ferramentas de revisão de derrotas de matérias no Legislativo. Contribuem para a judicialização da política e o ativismo político do Judiciário”, opina o cientista político Luiz Felipe d’Avila, presidenciável da sigla em 2022. A bancada, no entanto, se posiciona de forma diferente. “O papel do Supremo é defender a Constituição, por isso qualquer partido deve ter o direito de acessá-lo. Impedir isso seria um ataque à democracia brasileira”, afirma Adriana Ventura (SP), líder da legenda na Câmara.

Limitar o acesso de partidos ao Supremo é, de fato, uma ideia polêmica. Para muitos especialistas, a proposta é antidemocrática e põe em risco uma das principais conquistas da Constituição. O amplo acesso ao Judiciário é visto como um mecanismo fundamental para o maior controle do poder público pela sociedade civil e seus representantes eleitos. “Alterar o rol de entidades que podem acessar o STF é uma proposta de quem está insatisfeito com a derrota e quer virar a mesa”, avalia Thiago Hansen, professor de história do direito da UFPR. Ele acrescenta que reconhecer a legitimidade do STF para julgar a constitucionalidade das leis previne cenários que se repetiram ao longo das ditaduras no Brasil, quando o Executivo ameaçava cassar ou extinguir o Judiciário por meio da força bruta.

FORA - Zeca Dirceu, líder do PT na Câmara: a sigla não seria afetada por restrição
FORA - Zeca Dirceu, líder do PT na Câmara: a sigla não seria afetada por restrição (Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados)
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Por esse e outros motivos, de acordo com alguns estudiosos, a tão criticada “judicialização da política” está longe de ser um problema. Pelo contrário. Segundo eles, esse é um processo natural que evita que direitos de minorias sejam atropelados por interesses políticos no Congresso. “É imoral criar uma barreira no acesso ao STF, isso abre espaço para que partidos maiores tenham o monopólio de questionar a constitucionalidade de uma lei”, afirma José Eduardo Faria, professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito e decano da Faculdade de Direito da USP. O problema, segundo pesquisadores, não está no número de processos no Supremo, mas na incapacidade dos partidos de buscarem consensos. “O contraditório não é a participação do STF na política, mas a incorporação do Judiciário como um ‘terceiro turno’ na estratégia partidária”, avalia Ana Claudia Santano, professora de direito eleitoral da UFC e coordenadora da ONG Transparência Eleitoral.

Ainda falta clareza às regras em discussão no Parlamento para se tentar conter os atuais excessos de provocações ao STF. O que se espera é que qualquer mudança seja feita levando-se em consideração o bom funcionamento das instituições, a autonomia entre os poderes e os direitos dos representantes eleitos. Mas é preciso também que haja moderação nesse movimento de levar questões de natureza política aos tribunais, ainda mais ao Supremo, já tão apinhado de causas que fogem ao seu papel.

Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876

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