A decisão de denunciar meu ex-marido depois da última agressão dele contra mim não foi simples. Mexeu com várias emoções e dúvidas: afinal, acabei expondo o pai de meus quatro filhos. Mas a brutalidade daquele dia em que ele me acertou no rosto foi decisiva. É inaceitável e agora, depois de vários episódios, não me calei. Havíamos combinado que Murilo traria as crianças para casa às 22h30. O relógio já marcava meia-noite, e nada. Fiquei realmente preocupada e externei isso quando enfim apareceu, à meia-noite. Ele se encheu de raiva e começou o ciclo de agressões verbais. Peguei o celular, avisei que estava filmando a cena e ele partiu para cima de mim. Arremessou meu telefone no chão e me deu um soco no lado esquerdo da face. Caí de joelhos, meio tonta, mas me levantei. Logo veio mais uma pancada, forte, que quebrou meu maxilar. Nossos filhos, que assistiram a tudo, tentaram frear a violência, em vão. Murilo estava incontrolável.
Fiquei constrangida, doída, um caco. Foi aí que me ocorreu acionar a Justiça. Não era a primeira vez que sofria abuso físico e psicológico dele. Nosso casamento durou cinco anos e, ao longo desse tempo, fui agredida em três ocasiões, além das duas últimas, pós-separação, de 2018 para cá. Sempre silenciei, em nome de nossa história. Conheci meu ex-marido em 2012. Ele foi comemorar em um bar a vitória do time em que jogava e nos apaixonamos, engatando uma relação intensa. Em dois meses, estávamos noivos. Tivemos quadrigêmeos e um deles ficou na UTI muitos dias. Quando o bebê finalmente teve alta e chegou em casa, passava horas com ele no colo, não conseguia largá-lo. Um dia, Murilo pediu que eu o soltasse, o que neguei, claro, e isso despertou sua fúria. Meu marido, então, me empurrou com força contra a parede. Caímos eu e meu filho no chão. E ali cruzamos, como casal, uma linha que nunca deve ser atravessada: a do respeito.
Mesmo assim, com os filhos pequenos, decidi perdoá-lo, o que tantas mulheres fazem, e nos mudamos para Salvador com a ideia de tentar uma vida nova. Cheguei a acreditar que dali em diante daria certo. Só que não demorou muito para passarmos a brigar mais e mais, e aí voltaram as traições dele. Soube de pelo menos cinco mulheres. Sempre que eu falava em separação, Murilo dizia que eu ia ter problemas financeiros, que passaria fome, e eu tinha medo, muito medo. Um dia, tomei coragem, foi cada um para um lado, e ele cumpriu sua ameaça, me deixando sem dinheiro. Atualmente, só paga a pensão se eu recorro à Justiça. O lado bom disso tudo é que me sinto realmente fortalecida. Ainda que esteja no vermelho no banco, me bate um orgulho, pois estou me respeitando e trilhando o meu próprio caminho. Devagar, mas estou.
Ter sido alvo de violência desenvolveu em mim um pavor de voltar a me relacionar afetivamente. Não estou fechada para o amor, isso não, porém me tornei bem mais cautelosa que antes. Namorei uma vez depois da separação, mas ainda é muito difícil. Com certeza, não colocarei qualquer pessoa dentro da minha casa. Hoje faço duas sessões de terapia por semana para conseguir apagar as marcas psicológicas das agressões. A ferida segue aberta. Fico sempre em alerta, achando que a qualquer momento pode acontecer de novo. Também as sequelas físicas do que sofri ainda trago comigo, tatuadas no corpo: tive de operar o maxilar e vou me submeter a mais duas cirurgias na face. Apesar de toda a dor e da vergonha, resolvi romper o silêncio justamente porque minhas filhas, de 7 e 14 anos, presenciaram a brutalidade. E tudo o que eu não quero é que cresçam achando que é normal um homem agir daquela maneira com uma mulher.
Patrícia Pontes em depoimento dado a Nathalie Hanna
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767