No dia 1º de janeiro deste ano, recém-empossado para o seu terceiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva subiu ao parlatório do Palácio do Planalto para reforçar o que considerava um recado importante à nação. Depois de uma disputa eleitoral apertada, na qual venceu Jair Bolsonaro por menos de 2% dos votos, ele prometeu unir o país com seu trabalho. “Vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim. Vou governar para todos e todas, olhando para o nosso luminoso futuro em comum, e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância. A disputa eleitoral acabou”, anunciou. Passados pouco mais de nove meses, no entanto, um levantamento feito para VEJA pelo instituto Paraná Pesquisas mostra que o presidente ainda governa um Brasil dividido, tem a desconfiança de quase metade do eleitorado e quase nada avançou para conquistar corações e mentes de quem votou no adversário em 2022.
A fotografia tirada agora é muito parecida com o registro da polarização exposta pelas urnas. Lula tem o governo aprovado por 51,6% do eleitorado, uma maioria apertada e quase o mesmo percentual dos votos que teve no segundo turno (50,9%). Quatro em cada dez consultados desaprovam a sua gestão à frente do país, embora a maioria ache que ele faz um governo melhor que o de seu antecessor (veja o quadro). O percentual dos que avaliam a sua gestão como ótima ou boa (38%) é praticamente o mesmo dos que a consideram ruim ou péssima (35%) — como referência, nos oito meses iniciais do seu primeiro mandato, em 2003, o petista tinha 45% de ótimo/bom e apenas 10% de ruim/péssimo, segundo o Datafolha.
Embora os números estejam longe de ser uma tragédia, há sinais de alerta. Um deles é o fato de haver um contingente expressivo que não se deixou seduzir pelos primeiros passos do governo, apesar de tradicionalmente haver certa boa vontade do brasileiro com o mandatário em início de trabalho. “Lula ainda não conquistou o eleitor de Bolsonaro e já perdeu a sua lua de mel”, avalia Murilo Hidalgo, diretor do Paraná Pesquisas. Outro ponto de preocupação é que 68% dos entrevistados disseram que a situação financeira deles e de suas famílias piorou ou segue na mesma em relação aos tempos do bolsonarismo.
Também deve preocupar a análise mais detalhada que o eleitor faz do trabalho do governo. Para a maioria (22,9%), a área em que o presidente tem ido pior é a da segurança, um tema sensível e que tem sido largamente explorado pela direita nos embates eleitorais. Nas últimas semanas cresceu o volume das críticas ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, na esteira da violência recorde em estados como a Bahia e de casos bárbaros como os assassinatos de três médicos no Rio de Janeiro. O segundo maior problema citado na pesquisa não é menos sensível: a economia. Em que pese Lula ter conseguido alguns bons indicadores e ter tocado projetos importantes como o novo arcabouço fiscal, a reforma tributária e um programa de negociação de dívidas da população, há no eleitor a sensação de que a situação ainda está longe de inspirar confiança.
Pelo menos publicamente, a base governista diz que não há motivos para qualquer tipo de alarme. Líder do PT na Câmara, Zeca Dirceu (PR) acha que a popularidade de Lula condiz com o contexto no qual a gestão começou. Ele minimiza o fato de a aprovação ter oscilado negativamente na comparação com maio. “Houve queda inexpressiva, resultado dos problemas sociais e econômicos que herdamos e que ainda afetam a população. Diante disso, e somado à tentativa de golpe em janeiro e à instabilidade política, além do cenário de guerra no mundo, os números são muito bons”, acredita. Para o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que foi atuante na transição, o governo ainda está sendo construído. “O processo de pacificação é longo. Estamos no primeiro ano, e a polarização ainda está latente”, afirma.
A exemplo da avaliação de governo, a pesquisa também mostra que eleitoralmente Lula não conseguiu avançar sobre o contingente que não optou por ele em 2022. Em nenhum dos quatro cenários sondados, o petista chega perto de seus 48% de votos totais no primeiro turno — atinge no máximo 37,7%. Somados, os possíveis presidenciáveis do centro à direita têm 48% dos votos (veja o quadro abaixo). “Chama a atenção o fato de Lula não ter conseguido avançar em seus percentuais. No ano passado, ele só conseguiu furar o seu teto devido à rejeição de Bolsonaro”, avalia Hidalgo.
Em contrapartida, a centro-direita tem motivos para acalentar maiores esperanças para 2026. Os governadores Tarcísio de Freitas (SP), Romeu Zema (MG) e Ratinho Junior (PR), apontados como potenciais presidenciáveis, conseguem atingir dois dígitos na pesquisa, uma boa marca considerando que faltam três anos para a eleição e que há espaço para que se tornem mais conhecidos no cenário nacional. Outros políticos do mesmo espectro ideológico também aparecem bem. A ministra Simone Tebet, terceira em 2022 com 4,2% dos votos válidos, tem hoje o dobro de intenções de voto.
É claro que há ainda muitas variáveis para definir como se dará a próxima disputa presidencial. Uma delas é saber se de fato Lula será candidato — ele disse na campanha que não seria, mas hoje ninguém leva muito a sério essa afirmação. Outra dúvida é como estará a situação econômica e social. Também podem interferir, segundo especialistas, mudanças no cenário internacional, como eventuais vitórias da direita com Donald Trump, nos Estados Unidos, e Javier Milei, na Argentina. Em paralelo, é difícil saber se as legendas de centro vão conseguir construir uma candidatura única de oposição. Na última eleição, a fragmentação inviabilizou qualquer esforço para evitar a polarização.
Será igualmente crucial mensurar o tamanho que terá Jair Bolsonaro no tabuleiro político. Na pesquisa espontânea, quando não são apresentados os nomes dos candidatos, o ex-presidente foi lembrado por 14% dos eleitores (Lula teve a menção de 22%), o que mostra que o ex-capitão, mesmo inelegível e todo enrolado com múltiplas investigações, ainda tem um ativo político considerável para a influir na sucessão presidencial em 2026. Nos últimos dias, políticos do centro à direita têm se movimentado no fio da navalha quando o assunto é Bolsonaro: tentam atrair o eleitor bolsonarista ao mesmo tempo que buscam manter distância segura dos enroscos do ex-presidente. Mesmo quem foi aliado de Bolsonaro, como o ex-ministro Ciro Nogueira, presidente do PP e um dos articuladores do Centrão, acha que há espaço para crescimento político à margem do ex-presidente. “O maior eleitor do Brasil é anti-Bolsonaro ou anti-PT. Se o candidato tiver isso e não tiver a rejeição que os dois têm, ele vence”, diz. Para o cientista político Marco Antonio Teixeira, professor da FGV, sem o apoio do ex-presidente são remotas as chances de sucesso eleitoral da oposição. “É muito difícil o candidato da direita não colar em Bolsonaro. Qualquer um deles vai depender muito do capital político do ex-presidente. No caso de Tarcísio, que por sinal tem aberto mão de pautas bolsonaristas em São Paulo, vai depender também da capilaridade que seu partido, o Republicanos, vai dar a ele em todo o Brasil”, afirma.
Um fator que explica a dificuldade de Lula de se aproximar do eleitorado bolsonarista é a falta de acenos claros a esse segmento. Um exemplo é a maneira como o governo não consegue desvencilhar a sua imagem das pautas de costumes, que têm sido responsáveis, em grande parte, por azedar a lua de mel de Lula. A oposição conservadora tem conseguido atrelar ao novo governo discussões como a descriminalização do aborto até doze semanas de gestação e o porte de maconha para uso pessoal. Embora essa agenda progressista tenha sido tocada pelo Supremo Tribunal Federal, a confusão foi estabelecida por medidas como a aprovação pelo Conselho Nacional de Saúde da defesa da flexibilização dos dois temas. Também não ajudou o episódio envolvendo uma dança sensual, ao som de funk, em um evento do Ministério da Saúde — o que levou, inclusive, à demissão do diretor da pasta responsável pelo ato. “O importante é sairmos da armadilha ideológica e focarmos em políticas públicas e no projeto de crescimento consistente do país”, apregoa Reginaldo Lopes. Para Marcelo Di Giuseppe, sócio do Instituto de Planejamento Estratégico (Ibespe), a queda na aprovação de Lula se deve, principalmente, à insatisfação em relação à economia, mas atrapalha a maneira como o governo trata outros assuntos. “Até entre a esquerda há aqueles que estão insatisfeitos com a prioridade que o governo dá a pautas woke (políticas liberais ou de justiça social) em detrimento da pauta do trabalhador. São coisas simples, mas nas quais a gente vê uma desconexão entre o político e o cidadão comum”, diz.
No discurso de posse, Lula bateu na tecla de que “não existem dois Brasis”. A avaliação do início de governo mostra, porém, que ainda há um país dividido em relação ao andamento do governo. Lula precisará calibrar suas ações se quiser de fato dobrar objeções que ainda estão postas à mesa.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863