O Ministério da Justiça ainda orbitava em torno dos desdobramentos políticos e judiciais dos ataques de 8 de janeiro de 2023 quando Ricardo Lewandowski, juiz de carreira e por dezessete anos integrante do Supremo Tribunal Federal (STF), aceitou no início deste ano suceder ao mais popular dos auxiliares do presidente da República. Protagonista dos embates contra a turba que depredou as sedes dos Três Poderes em Brasília — que as investigações definiram como uma tentativa fracassada de golpe de Estado —, Flávio Dino havia sido escolhido para ocupar uma cadeira na mais alta Corte do país, mas sua sucessão estava emperrada. O PT reivindicava a vaga para diversos candidatos; o PSB, partido de Dino, tampouco abria mão do cargo; e ministeriáveis de turno se apresentavam sem maiores liturgias. A pedido de Lula, Lewandowski assumiu o posto depois de demover resistências da família e cancelar contratos de sua bem-sucedida banca de advocacia privada. Seis meses e muitos problemas depois, o ministro está diante de um grande desafio.
Além do fogo amigo de petistas e socialistas, que não dão trégua, o ministro tem servido como uma espécie de para-raios das críticas à letargia do governo em apresentar respostas aos alarmantes índices de violência urbana, que, segundo as pesquisas, estão no topo da lista das maiores preocupações dos brasileiros. Há duas semanas, Lewandowski foi instado pelo próprio presidente da República. Em ano de eleição municipal, a segurança pública pode definir disputas em cidades importantes. A resposta do ministro estava pronta. Desde que assumiu o cargo, a equipe de Lewandowski já havia se debruçado sobre o assunto e elaborado um plano nacional para atacar o problema. A minuta da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) foi então apresentada a Lula. Em linhas gerais, ela amplia a área de ação da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Os dois órgãos ganhariam atribuições para atuar em casos que envolvam organizações criminosas e milícias.
Segundo dados do Ministério da Justiça, existem hoje mais de 100 organizações criminosas diferentes atuando em todo o país. As duas maiores, PCC e Comando Vermelho, têm ramificações em praticamente todos os estados e também no exterior, especialmente em países da América do Sul, como Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai. Esses grupos controlam o tráfico de drogas, assaltam bancos, sequestram, extorquem, corrompem e matam. Também atuam em atividades legais, como transporte público, hotelaria e prestação de serviços — utilizadas para lavar o dinheiro. E ainda estão infiltrados em órgãos públicos e nas polícias. Essas facções alimentam a violência cotidiana das grandes cidades. No ano passado, foram registrados em todo o país impressionantes 37 000 assassinatos, uma média de 103 mortes por dia — número, aliás, que pode ser bem maior, já que hoje nem sequer existe um sistema fidedigno que reúna esses dados de maneira organizada.
Em vez de adotar políticas meramente reativas ou populistas, como o envio de equipamentos, armamento ou tropas da Força Nacional para cidades em apuros, o Ministério da Justiça pretende ativar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criado em 2018 mas que nunca saiu do papel. A medida vai permitir que a União defina diretrizes nacionais de combate ao crime e reúna informações de todas as polícias — PF, PRF, polícias penais, militares e civis, além da Força Nacional — para investigar e executar operações. Na prática, serão concedidos às polícias federal e rodoviária poderes para combater diretamente as milícias e os grupos criminosos que atuam nas cidades, independentemente se o crime for ou não transnacional. O ministro tem no retrovisor o exemplo recente do assassinato da vereadora Marielle Franco, caso que permaneceu travado por cinco anos no Rio de Janeiro e só foi completamente elucidado quando a PF assumiu as investigações. A PRF, além das estradas, passaria a ser responsável pelo patrulhamento de rios e ferrovias, utilizadas como rotas pelas organizações criminosas, especialmente nas áreas de fronteira.
Hoje, existem mais de 1 500 órgãos municipais, estaduais e federais envolvidos com a segurança pública. Eles atuam segundo suas próprias diretrizes, não se comunicam e nem sempre têm objetivos comuns. Esse cenário, aliado à corrupção, cria um ambiente propício para a expansão do crime e permite que as milícias continuem se estabelecendo nas comunidades mais carentes. Nos últimos dezesseis anos, por exemplo, as milícias triplicaram seu domínio no Rio de Janeiro. Unir as forças e estabelecer uma meta comum é uma proposta que encontra amparo na lógica. O problema é quando a lógica se curva a interesses políticos de ocasião. Pesquisa Genial/Quaest divulgada na quarta-feira 10 mostra que a segurança pública perde apenas para a economia entre os principais problemas do país. Não à toa, nos cinco municípios com as maiores taxas de homicídios em 2023 — Rio de Janeiro, Salvador, Manaus, Fortaleza e Recife —, o combate à violência urbana é plataforma de campanha de todos os pré-candidatos a prefeito.
O PT, por exemplo, resistia à ideia de um plano nacional de segurança, até o momento em que percebeu o tamanho do desgaste político do governo e o reflexo desse desgaste nas campanhas municipais. Era preciso reagir. Lula então pediu ao Ministério da Justiça que apresentasse o plano. A proposta já estava pronta havia mais de três meses, mas encontrava-se convenientemente embarreirada na Casa Civil, que queria evitar atritos com alguns governadores. Atritos que, aliás, serão inevitáveis. O governador Ronaldo Caiado, de Goiás, por exemplo, já disse que não cabe ao governo federal estabelecer o que é e o que não é prioridade na área de segurança. Muitos como ele, e não só de oposição, pensam da mesma maneira. No Congresso, a proposta corre o risco de cair na vala comum da disputa ideológica e do lobby corporativo. “Ampliar as prerrogativas da Polícia Federal em detrimento da Polícia Civil e da Polícia Militar é o governo querendo formar uma superpolícia para estabelecer uma ditadura”, disse a VEJA o presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara, Alberto Fraga (PL-DF), coronel reformado da PM.
Antes de enviar a proposta ao Congresso, Lula pretende reunir os governadores de todo o país para discutir o plano. Ouvir é sempre uma boa iniciativa, mas, neste caso, as chances de chegar a um consenso são pequenas. O governo sabe disso, mas aposta na pressão da sociedade. “Não há de se falar de um momento ideal para se enviar ao Congresso uma legislação como esta porque o momento ideal o Brasil já perdeu ao ter deixado o crime organizado ter o tamanho que tem hoje”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O próprio Lewandowski entrou em campo para tentar convencer os parlamentares de que a proposta não deve ser reduzida a uma disputa de poder. “A PEC da Segurança é um instrumento necessário para combater de forma mais eficaz o crime organizado, que cresce a cada dia e representa uma ameaça à segurança de todos os cidadãos”, disse o ministro da Justiça a VEJA. É um importante e necessário primeiro passo.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901