O Brasil ficou conhecido como um refúgio de fugitivos internacionais. A fama não é injusta. Para ficar apenas nos casos mais célebres, foram encontrados por aqui o assaltante inglês Ronald Biggs, o mafioso italiano Tommaso Buscetta e o megatraficante colombiano Juan Carlos Abadia. Mais do que um lugar aparentemente propício para escapar do radar das autoridades, o país se tornou recentemente também um posto-chave para o tráfico internacional de drogas — ou seja, além de buscar um esconderijo, os foragidos passaram a vir para cá para fazer negócios. É o caso de um dos maiores chefões da máfia italiana ‘Ndrangheta, Rocco Morabito, de 54 anos, conhecido como o “rei da cocaína de Milão”, preso no último dia 24, junto com um comparsa, Vincenzo Pasquino, em um flat em João Pessoa, na Paraíba, enquanto negociava o aluguel de imóveis na região. O tamanho da operação para capturá-lo mostra a relevância do bandido — a ação da Polícia Federal teve apoio da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), do DEA (o poderoso departamento antinarcóticos dos EUA), do FBI (polícia federal americana), da Interpol (polícia internacional) e da Carabinieri (italiana). Morabito tentava escapar da Justiça devido às quatro condenações por tráfico internacional de drogas e envolvimento com organização criminosa. O suficiente para ficar 103 anos atrás das grades.
O episódio da captura na Paraíba acende um alerta em relação à presença por aqui da poderosíssima ‘Ndrangheta. Nos últimos anos, a máfia da Calábria superou em poder e influência as organizações siciliana Cosa Nostra e napolitana Camorra. Com uma movimentação financeira na casa de 50 bilhões de euros anuais (quase 3% do PIB italiano), o grupo, cujo nome significa “coragem e lealdade” em grego, gerencia 40% do tráfico global de cocaína e está em trinta países. Ela entrou para o radar das autoridades brasileiras depois que dois membros acabaram sendo presos em 2019 em um apartamento na Praia Grande, litoral de São Paulo.
A presença no país de um membro da alta hierarquia da máfia, como Morabito, reforça o papel estratégico que o Brasil assumiu no narcotráfico global. “Ele era o segundo foragido mais procurado da Itália”, diz o chefe do escritório da Interpol no Brasil, Bruno Samezima — o primeiro é o chefão da Cosa Nostra, Matteo Messina, sumido desde os anos 90. “O histórico criminoso dele é muito antigo e as relações da organização criminosa à qual ele pertencia com outras do mundo todo, inclusive do Brasil, são muito fortes”, completa Samezima.
As ligações da ‘Ndrangheta com bandidos brasileiros, como alerta o delegado, não são com qualquer quadrilha, mas com o Primeiro Comando da Capital, a principal facção criminosa do país. No período de dois anos em que a PF esteve no encalço de Morabito, ele passou por Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo. Os rastros dele indicam possíveis encontros com membros graduados do PCC para negociar remessas de cocaína à Europa e à África. Um dos principais contatos dos italianos seria André Oliveira Macedo. Mais conhecido como André do Rap, ele saiu pela porta da frente do presídio após um habeas-corpus concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello, do STF (veja a entrevista na pág. 11), em 2020 — e nunca mais foi visto.
A questão principal agora é quanto a prisão de Morabito pode ajudar a desmantelar a máfia italiana e seus negócios pelo mundo. A esperança é repetir o que ocorreu com Buscetta. Na década de 80, capturado em São Paulo e entregue à Itália, ele virou um dos maiores delatores da Cosa Nostra e levou à prisão mais de 300 integrantes. A ‘Ndrangheta agora toma o seu lugar no banco dos réus — em janeiro deste ano, teve início aquele que é tido como um dos maiores julgamentos de mafiosos de lá, com mais de 350 réus ligados à organização calabresa, entre eles chefões do grupo, parlamentares, prefeitos e empresários.
Não há ainda uma decisão a respeito do destino da dupla presa recentemente no Brasil — a extradição será julgada pelo STF. O que está claro, no entanto, é que é urgente desmontar a união entre os criminosos italianos e brasileiros. As autoridades já sabem que a relação não se restringe mais ao comércio de drogas, mas envolve a importação de expertise em temas como lavagem de dinheiro e infiltração nos órgãos públicos. É, obviamente, uma parceria que não pode prosperar.
Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741