“Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre País…”, diz, a certa altura, o Hino da República (1890), de autoria de Medeiros e Albuquerque (letra) e Leopoldo Miguez (música). É um retrato irretocável do Brasil dissimulado. Não por acaso, o trecho costuma ser lembrado pelos estudiosos da escravidão como testemunho de que o país se relaciona mal com suas verdades incômodas — ao que tudo indica, os primeiros negros capturados chegaram aqui poucas décadas após o descobrimento, com “grandes probabilidades de terem vindo já na expedição de Martim Afonso de Sousa, em 1531”, como explica Caio Prado Júnior em Formação do Brasil Contemporâneo (1942); até meados do século XIX, cerca de 3,6 milhões de africanos cativos vieram para cá; e fomos a última nação americana a abolir a escravatura. Os versos também ajudam a entender o que está por trás do mito da democracia racial — impulsionado sobretudo a partir da década de 30 —, responsável pela difusão da ideia de que o preconceito e a discriminação devidos à cor da pele não existiriam no país. É claro que existem.
O episódio do jornalista William Waack — afastado do Jornal da Globo depois de ser flagrado dizendo “é coisa de preto”, ao se referir a alguém que buzinava sem parar perto do local em que ele falaria ao vivo — jogou luz em um tema que insiste em permanecer nas sombras: o racismo à brasileira. E com ele brota uma espinhosa questão: o que é ser negro neste país? Os indicadores socioeconômicos mostram os afrodescendentes vivendo em franca desvantagem em relação aos brancos — só tendo sido mais valorizados na última década no que se refere ao ensino universitário, em razão da adoção das cotas.
É verdade que a conscientização da existência, no Brasil, de discriminação baseada na cor da pele se tornou quase uma unanimidade. Em pesquisa Abril/MindMinders, encomendada por VEJA, 98% dos entrevistados admitiram que, sim, há racismo no país. Porém, apenas 1% dos participantes puderam ser classificados como “muito preconceituosos”, considerando-se as respostas que deram a um conjunto de onze questões, enquanto 54% se situaram na faixa dos “não preconceituosos”. Ocorre que 72% dos negros afirmaram já ter sofrido algum tipo de discriminação. O intrigante paradoxo revela, de novo, o Brasil dissimulado: um país de muito racismo e poucos racistas.
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, escreveu o jurista e diplomata pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910), no clássico Minha Formação (1900). Figura-chave do movimento abolicionista, e membro da plêiade dos chamados “intérpretes do país”, ele acreditava que não bastava acabar com a escravidão: era preciso pôr fim à sua herança. Ainda estudante de direito, Nabuco salvou da pena de morte um negro que assassinara dois homens — um deles o açoitara. Logo depois disso, começou a redigir um estudo, não concluído, intitulado “A escravidão”, que, no seu planejamento, seria dividido em três partes: “O crime”, “A história do crime” e “A reparação do crime”. Essa palavra, “crime”, é usada hoje pelo antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), para caracterizar o racismo brasileiro. “É um crime perfeito, pois, além de matar fisicamente, alija, pelo silêncio, a consciência tanto das vítimas quanto da sociedade como um todo”, anota ele no ensaio com que participa do livro O Racismo e o Negro no Brasil: Questões para a Psicanálise, recém-lançado. A VEJA incomoda o silêncio em torno dessa verdade inconveniente. É preciso falar sobre racismo. Em razão do 20 de Novembro, o Dia da Consciência Negra, é o que fazemos em um especial de 31 páginas.
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