Era 22 de setembro de 1914 quando um servidor público de 18 anos, Eduardo de Lima e Silva Hoerhann — filho de um militar austríaco e sobrinho-neto de Duque de Caxias —, foi enviado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) ao Alto Vale do Itajaí, no centro de Santa Catarina, para liderar o primeiro contato pacífico entre brancos e indígenas Xokleng. A comunidade era alvo frequente de invasões e massacres promovidos por bugreiros (milicianos contratados para atacar os indígenas, pejorativamente chamados de bugres) entre o fim do século XIX e as décadas seguintes, quando a colonização europeia avançava pelo interior do estado.
Mais de 100 anos depois, a região, hoje conhecida como Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, continua palco de disputas. O conflito agora se dá em um dos julgamentos mais importantes e polêmicos da história recente: o do marco temporal, segundo o qual uma área só poderá ser demarcada se for comprovado que os indígenas a ocupavam em outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Impulsionada pela bancada ruralista, a Câmara aprovou o PL 490/2007, que cria essa nova regra. Falta o aval do Senado e há a expectativa de que o Supremo Tribunal Federal, em breve, julgue o entendimento inconstitucional. Dessa forma, tudo continuaria como está, ou seja, sem a necessidade de um prazo específico de ocupação de uma área para definir o direito à demarcação. A decisão do STF vai se basear justamente no imbróglio Ibirama-La Klãnõ e tem o poder de criar uma jurisprudência sobre o assunto.
Os Xokleng reivindicam atualmente a posse de 37 000 hectares na região. A população é de pouco mais de 2 000 pessoas, distribuídas em nove aldeias, que vivem da agricultura e mantêm contato com os centros urbanos do entorno. Os conflitos do passado os obrigaram a fazer recuos em nome da sobrevivência. Para sair da mira dos ataques frequentes dos bugreiros (um dos massacres quase dizimou a etnia em 1904), concentraram-se numa porção menor do território. Em 1926, o governo estadual reconheceu os direitos dos Xokleng sobre uma área de 14 000 hectares, mas os indígenas sempre reivindicaram direitos sobre uma extensão maior. Em 2003, com base em estudos antropológicos, uma portaria da Funai fixou que o território deveria ser de 37 000 hectares. Abriu-se ali espaço à demarcação, mas ela nunca foi concluída.
Uma das complicações é que parte da área está sobreposta a 10% da Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, criada em 1977. Além disso, madeireiros e proprietários rurais passaram a reivindicar na Justiça direitos sobre o território. Em 2009, o governo do estado conseguiu autorização judicial em Santa Catarina para a reintegração da área da reserva. Na segunda instância, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região concluiu que a posse só poderia ser assegurada aos indígenas após o fim de todo o processo de demarcação. A Funai, então, decidiu levar o caso ao STF, em 2016.
Depois de tramitar em ritmo lento, a decisão sobre o processo parece ser iminente, pois a presidente da Corte, Rosa Weber, colocou o assunto em pauta. O julgamento foi interrompido no dia 7, quando o ministro André Mendonça pediu vista — ele tem até noventa dias para devolver o processo. Até então, o placar estava com dois votos a favor da tese de que é possível regularizar terras mesmo que não seja comprovada a ocupação delas por indígenas na época da promulgação da Constituição de 1988 (Edson Fachin e Alexandre de Moraes) e um contra (Nunes Marques). Os Xokleng afirmam que não estavam lá porque a violência os havia expulsado de boa parte dos 37 000 hectares. “O marco temporal é plenamente inconstitucional, pois a Carta garante o direito indígena à terra”, diz Alvaro de Azevedo Gonzaga, professor do curso de direito da PUC-SP.
Se a tese do marco temporal prevalecer, o impacto não será pequeno — a estimativa é que 113 territórios em processo de demarcação possam ser afetados. As entidades ligadas à causa indígena também se preocupam com uma provável contestação de áreas já homologadas. “Teríamos enorme insegurança jurídica”, diz Roberto Dias, professor de direito constitucional na FGV-SP. O imbróglio tem reverberado no exterior, de forma desfavorável à imagem do país. Em visita ao Brasil, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, manifestou preocupação sobre a proposta. Artistas de Hollywood como Leonardo DiCaprio e Mark Ruffalo engrossaram nas últimas semanas o coro de críticas. De fato, o Brasil tem muitas chagas históricas abertas. A ocupação de seu território é uma delas, com conflitos que se arrastam há um século, sem um ponto-final, como mostra a história dos Xokleng. É preciso uma solução justa e definitiva para esse tema.
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846