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Relatório vê desrespeito a direitos humanos de policiais

Estudo da Human Right Watch, organização internacional não governamental, traz casos de excesso de punição para policiais militares que criticaram órgão

Por Da redação
Atualizado em 4 jun 2024, 19h02 - Publicado em 9 mar 2017, 00h09

O artigo 5, inciso IX, da Constituição Federal de 1988, diz que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Mas, de acordo com o Código Penal Militar, de 1969, esse decreto não serve para os policiais militares. Segundo o artigo 166 do código, “criticar [o militar ou assemelhado] publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do governo” pode resultar em detenção de dois meses a um ano.

Ou seja, para policiais militares, expressar opiniões contrárias e com críticas à instituição em que trabalham não é permitido. Estudo divulgado nesta quinta-feira pela Human Right Watch, organização internacional não governamental, mostra excesso de punições a policiais militares que reclamaram e sugeriram mudanças no sistema militar brasileiro.

Ao site de VEJA, Maria Laura Canineu, diretora no Brasil da Human Rights Watch, explica que a ideia do estudo partiu de várias denúncias relatadas à entidade em que policiais militares foram expulsos, humilhados e até mesmo presos depois de exporem suas opiniões.

“Acreditamos que o excesso na punição e as punições desproporcionais inibem que os policiais participem do debate público. Nós pedimos reformas nos códigos disciplinares e que a linguagem da discricionariedade para punição seja reformada”, diz Maria Laura.

Um jeito de este cenário mudar, na visão da diretora da entidade, é a implementação de pedidos, reclamações e denúncias dentro da Polícia Militar. “Hoje, se um policial quiser denunciar um colega por abuso, por exemplo, pode ser punido por isso.”

Apesar da situação atual, Maria Laura acredita que a mudança tende a acontecer em pouco tempo. “Este ano começou com crise absoluta. Há muito tempo vivemos isso, mas casos como o do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, mostram que alguma coisa precisa ser feita.”

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O relatório acredita que autoridades brasileiras devem reformar leis que têm sido usadas para impor punições desproporcionais a policiais militares que se manifestam publicamente para defender mudanças no modelo policial ou fazer reclamações. O documento também lembra que as leis internacionais de direitos humanos conferem aos países considerável – embora limitado – poder discricionário para impor restrições à liberdade de expressão de membros das forças de segurança. Elas não autorizam, no entanto, que autoridades imponham sanções desproporcionais à gravidade das infrações.

Uma pesquisa de abrangência nacional realizada em 2014 pela FGV em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e pelo Fórum de Segurança Pública Brasileira mostra que 68,1% dos policiais militares entrevistados discordam da subordinação da organização ao Exército. Por estarem vinculadas ao Exército como forças auxiliares, a PM está sujeita ao Código Penal Militar que foi adotado durante a ditadura.

À Human Rights Watch, policiais de alta e baixa patente criticaram a estrutura e o treinamento militares. Segundo eles, a natureza militar perpetua uma visão de policiais como heróis que combatem o inimigo, o que pode levar ao uso excessivo da força, especialmente em comunidades pobres, e a altos níveis de estresse entre os policiais.

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Expulsos por se expressarem

Darlan Abrantes, PM do Estado do Ceará, foi condenado a dois anos de prisão em julho de 2016 após publicar, de forma independente, o livro Militarismo: um sistema arcaico de segurança pública, afirmando que a política militar deveria ser desmilitarizada. Um juiz substituiu a pena privativa de liberdade por liberdade condicional, mas ele já havia sido expulso da corporação em 2014, o que destruiu sua carreira. Sua exclusão foi motivada pela conclusão de que o livro continha “graves ofensas” e que, ao publicá-lo, Darlan havia demonstrado “total indisciplina e insubordinação”.

As punições excessivamente severas aplicadas contra alguns policiais têm um grave efeito inibidor em outros membros da força, que frequentemente se abstêm de expressar sugestões ou opiniões sobre reformas da polícia por medo de represálias, mostra o relatório.

Em seu livro, Abrantes afirma que o país tem um sistema policial “medieval”, no qual “ao policial de baixa patente não é permitido pensar”. Esses policiais devem simplesmente seguir ordens e, se criticarem o militarismo, são detidos, escreveu no livro. O autor acredita que transformar a PM em uma força policial civil a tornaria mais eficiente na redução da criminalidade e a aproximaria mais da população.

No ano passado, Darlan foi condenado a dois anos de reclusão, conforme previsto no artigo 155 do Código Penal Militar, por “incitar à desobediência, à indisciplina ou à prática de um crime militar”. O juiz impôs uma suspensão condicional da pena, determinando que Darlan não seria preso desde que respeitasse cinco condições: não voltar a delinquir, não ingerir bebidas alcoólicas, não frequentar casas de jogos ou tavolagem, não portar armas de fogo ou armas brancas e comparecer ao tribunal uma vez por mês.

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“Eu, para eles, sou um criminoso só porque eu tive a ousadia de pensar diferente, a ousadia de dizer que o sistema [militar] não funciona mais no nosso país”, contou à Human Rights Watch. “Sou a prova viva de que a polícia militar não respeita a democracia nem a liberdade de expressão.”

Outro caso de punição desproporcional envolve o policial militar do estado do Pará Luiz Fernando Passinho. Em uma manifestação no dia da Independência do Brasil, o “Grito dos Excluídos”, Passinho fez um discurso de dois minutos, no qual reclamou que, durante seus treinamentos, bombeiros e policiais militares escutam que não têm direitos. “Essa frase deturpa o caráter da nossa missão, deturpa nosso senso de cidadania e isso se reflete diretamente na nossa relação com a população”, afirmou Luiz Fernando, vestido à paisana, em seu discurso. “Nós não podemos aceitar que a nossa livre expressão seja criminalizada”.

O Comandante Geral da PM do Pará julgou que o discurso de Passinho “atentou contra a disciplina e a hierarquia militar ao se manifestar de modo a colocar no seio dos quartéis a discórdia e a desmoralização contra seus superiores”. O comandante ordenou a detenção de Passinho por 30 dias por ter violado nove proibições conforme o artigo 37, incluindo “portar-se sem compostura em lugar público” e a publicação de informações ”que possam concorrer para o desprestígio da corporação ou firam a disciplina”.

À Human Rights Watch, Passinho disse que tem sido perseguido por ter se manifestado. Em setembro, o comando ordenou sua detenção por 15 dias por não ter usado chapéu enquanto estava com o uniforme, uma infração normalmente punida com uma advertência. “O comando militar usa as regras de forma arbitrária. Policiais que cometem verdadeiros crimes escapam de punições.”

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Um estudo nacional publicado em 2016 pelo governo federal concluiu que policiais de baixa patente acreditam que raramente podem expressar uma opinião diferente de um policial superior no trabalho. Eles relataram ter frequentemente medo de fazê-lo. Mais de 14.000 praças participaram do estudo.

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Muitos policiais têm medo não apenas de enfrentarem procedimentos disciplinares formais, como também de sofrerem outras retaliações caso se expressem ou denunciem problemas. Leandro Bispo, PM do Pará, enfrentou sanções disciplinares em 2012, 2013 e 2014 associadas a três postagens no Facebook. Uma afirmava que a polícia apresentava condições de trabalho inadequadas, outra alegava corrupção e abusos dentro da polícia e a terceira trazia uma crítica que ironizava as instituições públicas brasileiras.

Em 2016, ele foi rebaixado de cabo para soldado. À Human Rights Watch, Bispo contou que no ano passado exigiram que ele devolvesse o valor do aumento de salário de seis meses que já havia recebido, além de sofrer retaliações informais contra as quais não teve como recorrer. Seu comandante o transferiu para a cidade de Porto de Moz, a quatro horas de carro e lancha da sua casa, o que ele acredita ser uma resposta aos comentários que escreveu ou compartilhou no Facebook.  Em dezembro, foi expulso da PM.

O governo federal publicou diretrizes nacionais em 2010 convocando os estados a reformarem leis e regulamentos disciplinares de forma a respeitarem os direitos contemplados pela Constituição. As diretrizes recomendam que os estados não apenas garantam os direitos dos policiais à livre expressão – especialmente na internet –, como também estimulem os policiais a participarem “nos processos democráticos de debate, divulgação, estudo, reflexão e formulação das políticas públicas” sobre segurança, em conferências, conselhos, seminários ou pesquisas.

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