Rico, poderoso e bem-sucedido, o advogado Roberto Caldas era uma autêntica estrela do mundo jurídico. Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele foi o segundo brasileiro a assumir a presidência da entidade, reconhecida por 24 países do continente. Também tinha no currículo passagem pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República e pela Comissão de Erradicação do Trabalho Escravo — o que lhe conferia poder e influência no Brasil e no exterior. Bem relacionado, chegou a ser cotado algumas vezes para assumir uma cadeira no Supremo Tribunal Federal durante os governos petistas. Todo esse prestígio ruiu depois que sua ex-mulher procurou as autoridades, em 2018, e contou que sofreu espancamentos e humilhações durante os treze anos em que esteve casada com o juiz. As acusações de Michella Marys — que incluíram situações de tentativa de homicídio, ameaças e assédio sexual — fulminaram a carreira do advogado.
Em meio ao escândalo, Caldas renunciou ao cargo na Corte Interamericana, seus contratos com clientes privados minguaram e sua bem-sucedida banca de advocacia de Brasília foi desfeita. No campo pessoal, ele teve de se afastar da ex-mulher e enfrentou a rejeição dos filhos. A OAB abriu um processo para cassar o seu registro profissional e a casa em que ele morava — uma mansão de 2 400 metros quadrados projetada pelo arquiteto Ruy Ohtake e avaliada em 50 milhões de reais — foi vandalizada. Nos últimos três anos, o advogado pouco colocou o pé na rua, por receio de sofrer ataques. Na época, VEJA publicou os relatos perturbadores que a ex-esposa fez à Justiça, entre eles o de que Caldas teria tentado matá-la com uma faca. Pois o caso sofreu uma reviravolta. Agora é o advogado que acusa a ex-mulher.
Para provar ter sido vítima de atos abusivos por parte do marido, Michella gravou o ex-companheiro por seis anos, fotografou supostas escoriações resultantes de agressões e entregou o material à Justiça. Testemunhos formais de funcionários completaram um barulhento processo de separação, no qual o casal também disputou um patrimônio estimado em 20 milhões de reais, além da mansão. Sem trabalho fixo desde que o escândalo eclodiu, Caldas passou os últimos anos se defendendo das acusações. Nesse período, ele anexou aos processos relatos de outro ex-marido de Michella, que afirmou ter sido agredido por ela, depoimentos de empregados domésticos que se disseram pressionados pela ex-esposa para testemunhar contra ele e provas de que as imagens das câmeras de segurança da casa, que poderiam revelar o que acontecia no interior da residência, foram apagadas por determinação da ex-mulher.
“Suportei a farsa, a traição e o ódio calculado com finalidade financeira. Suportei o linchamento moral baseado em meras acusações, sem provas. Fotos e áudios montados, recortados, corrompidos, divulgados como se fossem provas indiscutíveis. Vídeos que me inocentavam foram apagados. Mentiras em série. Conheci a condenação pela opinião pública, que não me permitiu defesa nem contraditório”, disse Caldas a VEJA. No mês passado, o ex-juiz foi absolvido das acusações de ameaça, constrangimento ilegal e agressão. Outras onze imputações, incluindo as mais graves, como tentativa de homicídio, já haviam sido rejeitadas. O Tribunal de Justiça do DF considerou, entre outros pontos, que não existia prova dos crimes ou havia dúvida razoável sobre a veracidade das informações contidas nos áudios, mensagens e fotos apresentadas por Michella. A palavra da vítima, concluíram os desembargadores, não deveria ser tomada como absoluta, embora seja em muitos casos o principal elemento de corroboração de um tipo de crime que normalmente ocorre intramuros — e sem testemunhas.
A ex-mulher e duas babás que testemunharam contra Caldas foram indiciadas pela suspeita de apresentarem falsas acusações à Justiça. O advogado de Michella, Pedro Calmon Filho, recorreu contra as absolvições. “O marido da Maria da Penha também foi absolvido duas vezes e a mulher estava em uma cadeira de rodas”, disse ele em referência à mulher que inspirou a lei que criou mecanismos de combate à violência doméstica. A VEJA Michella Marys afirmou que a absolvição do ex-companheiro é uma demonstração da vulnerabilidade feminina. “A Justiça não me protegeu, amanhã não protegerá a filha de alguma outra pessoa.” Livre das acusações, Caldas diz que seu objetivo agora é tentar reconstruir a vida e a carreira e, se possível, retornar à Corte Interamericana de Direitos Humanos. O recomeço nunca é fácil.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754