O início de Carnaval de Jair Bolsonaro ocorreu sob o ritmo de enorme tensão, à medida que boatos sobre a possibilidade iminente de uma prisão começaram a chegar ao “cercadinho de Mambucaba”, como ele apelidou seu refúgio praiano na região de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Em algum momento, ensaiou-se até a possibilidade de levar o capitão a alto-mar, de forma a ganhar tempo no caso da chegada da Polícia Federal. Assessores imediatamente começaram a disparar telefonemas com o objetivo de checar a temperatura da situação (alguns teriam sido endereçados a altas autoridades do Judiciário do país), e o clima só se acalmou quando foi constatado que não havia motivos para tamanho alarme. Mas a percepção é de que o risco continua, o que levou Bolsonaro a iniciar uma reação, usando as poucas armas de que dispõe no momento. O inquérito em curso a respeito da trama de um golpe para evitar a posse de Luiz Inácio Lula da Silva parece caminhar em marcha acelerada para transformá-lo em réu, como o mentor de uma quartelada que, segundo o que se sabe a respeito das investigações, por falta de apoio, não foi colocada em curso. O caso atinge também vários ex-assessores e até o presidente de seu partido atual, o PL, Valdemar Costa Neto.
O primeiro movimento de Bolsonaro para tentar sair das cordas ocorreu na segunda 12, com a publicação de um vídeo em que, vestido com a camisa da seleção, ele convoca apoiadores a participar de uma manifestação pública no próximo dia 25, na Avenida Paulista, em São Paulo. “Será um ato pacífico em nome do nosso estado democrático de direito. Peço a todos que compareçam trajando verde-amarelo”, afirmou, dizendo que aproveitaria a ocasião para se defender das acusações. Ao final, pediu que as pessoas não levem consigo “qualquer faixa ou cartaz contra quem quer que seja”, na tentativa de evitar mais embaraços judiciais, sobretudo com o ministro Alexandre de Moraes, do STF, que é o relator no Supremo do inquérito sobre o golpe. Momentos depois, Bolsonaro foi ainda mais explícito no pedido, dizendo que estavam vetadas no evento faixas contra Moraes, Lula e o STF. Resta ver qual será o efeito prático da ordem. O precedente de Bolsonaro não ajuda: no feriado de 7 de Setembro de 2021, em plena Paulista, sob aplausos da plateia que lotava a avenida, xingou o ministro Moraes e ameaçou não cumprir mais decisões do STF.
Quase que imediatamente à divulgação do vídeo com a convocação, aliados mais próximos passaram a tratar dos detalhes da organização. Um dos “produtores” do evento é o pastor e aliado de primeira hora de Bolsonaro, Silas Malafaia. Ele também se coloca como o principal “patrocinador”: financiará o enorme carro de som a ser estacionado na Avenida Paulista. Apesar do veto a estandartes contra Lula, Moraes e o STF, o pastor diz que Bolsonaro estará firme em suas motivações. “Bolsonaro vai mostrar o jogo de perseguição que está em cima dele”, afirma Malafaia. Segundo o pastor, estão confirmados “mais de 150 parlamentares”, ultrapassando inclusive a capacidade máxima do carro de som.
A lista dos que irão discursar é, naturalmente, mais enxuta: além do próprio Bolsonaro, foram selecionados nomes como o senador Magno Malta (PL-ES) e os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG) e Gustavo Gayer (PL-GO). Outra estrela do dia deverá ser a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, tida como “convidada de honra” do evento e cuja popularidade deverá ser explorada no ato. O governador paulista Tarcísio de Freitas confirmou presença em entrevista ao canal CNN Brasil na quarta 14. Dois dias depois, o prefeito paulistano, Ricardo Nunes, deu uma declaração também prometendo comparecer. A exemplo de Tarcísio, Nunes flerta com o apoio do eleitorado bolsonarista (é candidato à reeleição em São Paulo), mas procura manter alguma distância das ideias mais bélicas e das encrencas do ex-presidente.
Na área jurídica, a primeira reação do ex-presidente contra a decisão de Alexandre de Moraes veio no pedido para que o ministro do STF devolva a ele o passaporte, que foi entregue por Bolsonaro na semana passada, por ordem do juiz do Supremo. O argumento é que não há elementos na investigação, até agora, que justifiquem a medida. Além da retenção do documento, as restrições estabelecidas por Moraes incluem medidas como a proibição de se comunicar com outros investigados e de deixar o país. Até a quinta passada, 15, Moraes não havia respondido ao pedido da defesa. Para o entorno de Bolsonaro, ainda que a resposta seja negativa, o que é mais provável, a decisão reforçaria o discurso de que ele é perseguido pelo ministro do STF.
Na megaoperação da PF avalizada por ele, um dos pontos mais comprometedores ligando Bolsonaro está relacionado à participação dele na confecção de uma minuta com instruções para o golpe. O texto, de acordo com a delação do tenente-coronel Mauro Cid, teria sido elaborado pelo ex-assessor de assuntos internacionais Filipe Martins, preso na operação. Ainda de acordo com a investigação, a minuta foi revisada por Bolsonaro — foi e voltou até ficar do jeito que o ex-presidente queria. A investigação da PF tenta elencar outras provas para sustentar a delação de Mauro Cid. Na quarta passada, 14, a GloboNews noticiou que a polícia fez um levantamento com base em dados de localização das antenas de celulares que confirmaria o acesso de Filipe Martins e de outros dois responsáveis pela minuta ao Palácio da Alvorada no mesmo dia apontado como o da revisão do documento por Bolsonaro.
Apesar desses indícios e de outras provas que podem vir à tona com o aprofundamento das investigações, ainda não existe um rol claro dos crimes que podem ser atribuídos a Bolsonaro. Até o momento, diante das evidências que vieram a público, a hipótese mais firme é de que ele pode responder pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. As penas máximas desses delitos, juntas, somam 33 anos e quatro meses, porque há, no caso do ex-presidente, o agravante de ele ser um funcionário público envolvido em um atentado contra o Estado. “O STF, pela primeira vez, está se debruçando sobre o que há de mais importante: os geminados temas que fazem do Brasil um país juridicamente primeiro-mundista: a Constituição brasileira de 1988 e a democracia nela positivada”, diz o ministro aposentado do Supremo Ayres Britto.
Via de regra, a intenção de praticar crimes não é punível pelo direito penal, mas, quando se fala em atentados contra o Estado e a democracia, o vínculo entre a cogitação e o crime não é uma linha reta, por isso a apuração não pode seguir a mesma lógica de um crime comum. “Um golpe é um conjunto de vários atos políticos”, define o professor da USP e advogado criminalista Mauricio Stegemann Dieter. Até agora, ainda não ficou claro o que se sabe sobre a investigação a respeito de uma relação de causalidade reta entre Bolsonaro e os atos de 8 de Janeiro. Os próximos passos da investigação precisam terminar de esclarecer as etapas dessa cadeia, delimitar as condutas do ex-presidente e entender quanto elas concorreram ou não para a tentativa de golpe.
Na manifestação programada para a Avenida Paulista, Bolsonaro pretende fazer uma defesa ponto a ponto das acusações. A respeito da minuta do golpe, por exemplo, como já declarou em entrevista a VEJA, vai negar que tenha se encontrado com Filipe Martins para qualquer discussão do tipo. “Ele sequer despachava comigo nos tempos de governo”, afirmou. O ex-presidente deixou explícita a intenção de usar o evento do dia 25 como prova eloquente de sua popularidade, ao dizer que, mais do que o discurso, a prioridade é ter a fotografia de uma Paulista lotada, “para mostrar para o Brasil e para o mundo a nossa união e o que nós queremos: ‘Deus, pátria, família e liberdade”. A presença de público seria a forma de provar o que uma sondagem eleitoral recente do Instituto Paraná Pesquisas apontou: a despeito das investigações, a popularidade de Bolsonaro entre seu público não foi afetada. Numa hipotética nova disputa presidencial com Lula (algo improvável de ocorrer, pois o capitão está inelegível), ambos acabariam empatados, dentro da margem de erro.
O gesto de um presidente convocar a população a ir às ruas em busca de apoio num momento politicamente adverso tem um precedente na história recente do Brasil — e o resultado não foi bom para o ocupante, na ocasião, do Palácio do Planalto. Em agosto de 1992, em meio a um escândalo de corrupção e com o país imerso em uma grave crise econômica, o presidente Fernando Collor de Mello pediu que os brasileiros fossem às ruas trajando verde e amarelo, em apoio a seu governo. Resultado: em resposta, centenas de milhares de brasileiros foram às ruas não com as cores da bandeira, mas de preto, contra Collor. Os atos foram os primeiros do que depois consolidou-se como o movimento dos “caras-pintadas”, como passaram a ser chamados os jovens que tingiam o rosto com as cores da bandeira para pedir o impeachment. Meses depois, a crise culminou na renúncia do então mandatário. Bolsonaro corre um risco semelhante de dar um tiro no pé caso não consiga sua foto na Paulista lotada. Mesmo sabendo disso, irá em frente, pois o momento para ele é de tudo ou nada.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880