Sob críticas até de aliados, Dino tenta dar resposta à onda de violência
Crise de segurança pela qual passa o país teve novo capítulo com morte de médicos na Barra da Tijuca, Rio
Era 12 de dezembro de 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nem havia tomado posse e Flávio Dino dava a sua primeira entrevista, já falando como se fosse ministro, para anunciar que os bolsonaristas que haviam promovido um quebra-quebra em Brasília naquele dia, atacando a sede da Polícia Federal e queimando carros e ônibus, sentiriam o peso da lei. “Todos serão responsabilizados”, afirmou. Com aquela coletiva convocada às pressas, Dino tornou-se o primeiro auxiliar de Lula a assumir o cargo antes de ser nomeado. De lá para cá, passou pelos distúrbios ainda mais graves, incluindo o 8 de Janeiro, a crise humanitária (e de segurança) na Amazônia, os ataques em escolas, e a queda de braço com as big techs. Em sua gestão, promoveu uma guinada na política de armas, tudo sob ofensiva incessante do bolsonarismo, de quem virou o inimigo número 1 no Congresso. Dino não só resistiu, como cresceu. Virou um dos rostos mais conhecidos do mandato e, nas últimas semanas, um dos favoritos a ministro do Supremo Tribunal Federal na vaga de Rosa Weber. Na mesma escalada do protagonismo, porém, começaram a vir as críticas, inclusive da esquerda, sobre o papel que a pasta tem desempenhado na segurança pública, um tema com muito potencial para desgastar a imagem do governo.
A sensação de que algo não ia bem começou a aparecer em março, quando facções em guerra impuseram o terror no Rio Grande do Norte, governado por Fátima Bezerra (PT). Depois, ganhou outro patamar com a escalada da violência na Bahia, também um estado governado por petista (Jerônimo Rodrigues) e com um histórico de dezesseis anos de gestões de políticos do partido. Dino saiu em socorro, liberando dinheiro e deslocando homens. Nada disso surtiu até agora o efeito desejado. No caso da Bahia, desde a morte do agente da PF Lucas Caribé, em 15 de setembro, nada menos que dezesseis suspeitos foram mortos pela polícia, elevando a já altíssima taxa de letalidade das forças de segurança locais, a maior do país.
Na esteira da violência, subiram as críticas a Dino, que tentou reagir. No domingo 1º, fixou um longuíssimo post em sua rede social no qual se defende das críticas de especialistas, diz que a responsabilidade pela segurança pública não é só da União, refuta a ideia de federalizar a questão, lista os projetos de sua pasta e faz uma inusual — para o padrão da esquerda — defesa das ações policiais. “Como fazer segurança pública sem as polícias? Ou contra as polícias?”, questionou. Um dia depois, veio outra longa publicação, para rebater aqueles que pediam mais “inteligência” e menos “força” no combate aos bandidos. “Creio que injustos ataques políticos e extremismos mobilizam torcidas, mas não resolvem problemas”, disparou.
No dia seguinte, em vez de posts, sacou talvez a sua maior arma até aqui para a segurança. O Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (Enfoc) pretende investir 900 milhões de reais até 2026 em cinco eixos: integração das instituições de segurança; maior eficácia das polícias; investimento em portos, aeroportos, fronteiras e divisas; mais efetividade da Justiça Criminal; e cooperação com estados e municípios.
Na mesma tacada, anunciou mais dinheiro e mais homens para a Bahia e autorizou o uso da Força Nacional de Segurança no Rio de Janeiro, com o aval do governador Cláudio Castro (PL). Dois dias depois, homens armados executaram a tiros três médicos em um quiosque na orla da Barra da Tijuca, na capital fluminense — entre as vítimas estava Diego Ralf Bomfim, de 35 anos, irmão da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) e cunhado do também deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ). O brutal episódio — foram mais de trinta disparos em menos de um minuto — levou Dino a levantar a hipótese de crime político e a determinar a entrada da PF na investigação. Até o fechamento desta edição, a polícia não havia divulgado nenhuma pista sobre a motivação. A ampla repercussão do crime ajudou a colocar ainda mais em evidência a crise de segurança pela qual passa o país.
Nesse contexto, o programa de Dino acabou soando como uma tentativa improvisada de mostrar algo diante de um problema que se avolumava. Para muitos, houve apenas o anúncio de que haverá um plano, tanto que o ministro prometeu o detalhamento em até sessenta dias. “A gente vê, a toque de caixa, uma tentativa de montar um plano nacional de enfrentamento ao crime organizado, que é uma demanda urgente do Brasil e parece ter sido deixada para depois, quando as críticas apareceram”, diz Rafael Alcadipani, professor da FGV e pesquisador na área de segurança. A mesma sensação de iniciativas dispersas e incompletas permeia outras ações. O Programa de Ação na Segurança (PAS) foi lançado em junho, também com vários eixos, mas caminha a passos lentos. O Pronasci 2, uma continuação de programa do governo Lula 2, serviu para o ministro visitar quase vinte estados distribuindo verbas e viaturas e fazendo política. Já o Amas (Programa Amazônia — Segurança e Soberania), que terá 2 bilhões de reais, foi lançado em fevereiro, mas sua regulamentação ocorreu só agora, junto com o lançamento do Enfoc.
Após nove meses de gestão, especialistas avaliam que o ministro se mostrou firme e eficiente na gestão de crises, mas vem falhando na área de segurança. Falta atenção a problemas antigos, como o fortalecimento da capacidade investigativa da polícia, o reforço no combate ao tráfico de armas e o investimento em política integrada com estados. “Temos facções com atuação nacional e um poder gigantesco. É preciso que o governo federal não vire simplesmente um repassador de recursos ou um atendedor de demandas de governador. Ele tem que ter condições de palpitar na política”, avalia Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz.
O principal problema do ministério não é falta de dinheiro — a previsão é de 20,4 bilhões de reais em 2024. Não só por isso, mas pelo status e visibilidade que proporciona, a pasta é cobiçada por muita gente. Vem daí parte do “fogo amigo” de que Dino tem sido alvo porque não faltam interessados no seu posto. O mais mobilizado é o PT, que simula todo tipo de cenário para assumir a pasta. A primeira opção continua sendo emplacar Jorge Messias, o advogado-geral da União, no Supremo — petista, ele tem a confiança do partido e disputa com Dino e o presidente do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, a preferência de Lula. Caso o escolhido seja Dino, é pequena a chance de Messias aceitar ir para o ministério. Interlocutores dele, aliás, afirmam que a possibilidade da sua alocação foi ventilada por aliados do ministro de forma a “sacramentar” a configuração com Dino no STF. Um nome que surge como alternativa no PT é o do advogado Marco Aurélio de Carvalho, do Grupo Prerrogativas. Também há na sigla quem se anime com a proposta de dividir o ministério em dois, o que tem pouca chance de prosperar a curto prazo.
Dino também tem planos para a sua sucessão. Ele se movimenta para deixar a pasta com o seu número 2, o secretário-executivo Ricardo Cappelli. Jornalista, ele foi secretário de Comunicação do Maranhão quando Dino foi governador e teve protagonismo sob Lula ao ser nomeado interventor na segurança do Distrito Federal após o 8 de Janeiro. Apesar de ter ido bem, seus críticos o avaliam como um nome de “pouca estatura”. Ele tem se envolvido em discussões com a imprensa e especialistas em criminalidade ao defender as ações policiais na Bahia. Outro nome cogitado, embora com menos chances de emplacar, é o do secretário nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, que é do mesmo PSB de Dino.
A movimentação entre aliados preocupa Lula. Uma coisa que irritou o presidente foi o “falatório” de Dino sobre a possibilidade de ser indicado ao STF. Na mais errática de suas declarações recentes, disse que, se for indicado ao Supremo, não retornará à política: “Seria uma decisão definitiva. Ou será, sei lá”. Por essas e outras, Lula passou a considerar adiar para 2024 a definição sobre a vaga no Supremo. Além de achar que isso pode “baixar a temperatura”, o petista entende que, a menos de três meses para o fim do ano, não seria tão “grave” deixar a escolha em aberto — Cristiano Zanin levou quatro meses para sentar na cadeira de Ricardo Lewandowski.
Independentemente da possível ida de Dino para essa cadeira, a política de segurança continuará sendo um grande desafio para o PT. O partido enxerga na gestão de Lula 3 a possibilidade de apagar a imagem de ineficiência dos governos de esquerda nessa área. Quando assumiu oficialmente o ministério, em 2 de janeiro, Dino defendeu no seu discurso de posse a pacificação do país e prometeu a busca da “paz verdadeira”. Seis dias depois, Brasília foi depredada por uma horda golpista. O ministro nem imaginava que seus problemas estavam só começando.
Dois entraves para a política de segurança do PT são a dificuldade para conciliar o combate ao crime com a defesa dos direitos humanos — o que a coloca em choque com a polícia — e a crença de que a violência pode ser combatida com a redução da pobreza. Para Luís Flávio Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança Pública da PUC Minas, a dinâmica do crime hoje é mais sofisticada e está apartada de condicionantes sociais e econômicas. “Enquanto a esquerda não compreender isso, vai continuar propondo soluções descoladas da realidade”, diz, citando como um dos principais gargalos a gestão do sistema prisional. Claro que a inoperância dos governos estaduais, dos mais diferentes matizes ideológicos, tem uma grande parcela de culpa na atual situação de descalabro. Mas é fato também que a sucessão de solenes cerimônias de apresentações de projetos federais com promessas de soluções representa muito pouco diante do tamanho do problema.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862