Tragédia das chuvas: o truque de pôr a culpa na vítima
As razões ambientais não podem ser postas de lado, mas a pobreza, associada à lentidão oficial, costuma ser ainda mais decisiva

No Brasil, tão certas quanto a temporada de chuvas são as tragédias provocadas pelos deslizamentos. Voltariam a acontecer, triste e atavicamente, como terrível retrato do verão. Da segunda-feira 2 à quarta-feira 4, temporais em Santos, Guarujá e São Vicente, no Litoral Sul paulista, provocaram a morte de pelo menos 24 pessoas — inclusive de dois bombeiros que socorriam as vítimas. Um deles foi atingido por pedras quando tentava salvar uma criança. Mais de 200 famílias ficaram sem casa. Sim, sempre haverá a influência da força da natureza — choveu no Guarujá, agora em 2020, mais do que a média histórica para esta época do ano —, mas nada é mais agressivo que o descaso público. Dito de outro modo: as razões ambientais não podem ser postas de lado, mas a pobreza, associada à lentidão oficial, costuma ser ainda mais decisiva.
Sabe-se, na ponta do lápis, segundo o Censo do IBGE, que um terço da população do Guarujá vive em favelas, invariavelmente penduradas nos morros, como ocorre no Rio. Em São Vicente, o índice de precariedade de moradia chega a 26%. Em Santos, é menor, 9%. E, no entanto, as políticas públicas pouco funcionam — ainda que prefeitos e governadores insistam em construir muros de promessas, promessas e promessas. Quando eles rompem, caem também as máscaras. Na segunda-feira, depois de visitar o bairro carioca do Realengo, atingido pela lama, o prefeito Marcelo Crivella apontou o dedo para o cidadão comum. “A culpa é de grande parte da população, que joga lixo nos rios frequentemente.” Ele foi severa e obviamente criticado. Pediu desculpas (menos mau), admitiu que “a conservação da cidade realmente não está nem perto do que a gente gostaria” e tocou a vida — até que os dramas voltem a se repetir.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677