Trama macabra da herdeira que deu golpe na mãe ganha reviravolta
Suspeita-se agora que a filha do marchand Jean Boghici pode ter sido vítima do mesmo esquema - ela tirou a própria vida há duas semanas
Quando desembarcou no Brasil no fim dos anos de 1940, o romeno Jean Boghici não tinha nem os documentos exigidos pela imigração. Recomeçou a vida consertando vitrolas e, de um cliente ao outro, fez amizade com pesos-pesados da cena artística brasileira, que sempre o arrebatou, como Lygia Clark e Guignard. Morto em 2015, aos 87 anos, deixou uma das mais preciosas coleções de pintura no país para a mulher, Geneviève, e as duas filhas. Pois uma delas, Sabine, envolveu-se com uma família de falsas videntes e, com elas, deu um golpe na própria mãe, mantendo-a trancada na cobertura em que viviam na orla carioca de Copacabana enquanto surrupiavam joias e telas, e ainda envolviam a viúva em uma trama recheada de mentiras que a levaram a transferir uma fortuna à quadrilha. Geneviève acreditava que, graças aos alardeados poderes das ciganas, assim salvaria Sabine de um grande mal que a aguardava, de modo inapelável.
Numa rara brecha, Geneviève escapou do cativeiro e, entendendo ter se enredado num esquema que lhe custou 725 milhões de reais, denunciou o bando à polícia, entregando inclusive a filha. Foram todos presos, mas, em março, Sabine conseguiu liberdade provisória. O sombrio enredo de contornos surrealistas poderia ter terminado aí, mas não. Há duas semanas, a caçula de Boghici se jogou da janela de um apartamento, um trágico desfecho que, segundo informações obtidas por VEJA, está longe de encerrar o caso.
A princípio tratada como suicídio, a morte da filha do marchand está agora sendo investigada pela polícia do Rio de Janeiro. No inquérito, testemunhas e pessoas ligadas ao clã Boghici questionam as circunstâncias da queda, dizendo que Sabine teria sido induzida a tirar a própria vida — crime que consta no artigo 122 do Código Penal. Ela estava morando no imóvel de Catarina Stanesco, uma das filhas de Rosa Stanesco Nicolau, a mãe Valéria de Oxóssi, suspeita de ter encabeçado todo o golpe, que segue encarcerada. Em dezembro de 2021, meses depois de conhecer Sabine, as duas se casaram em regime de comunhão universal de bens. A atual suspeita é que o objetivo de Rosa era controlar totalmente Sabine, que teria sido mantida em alguns momentos em cárcere privado. Num vídeo gravado por vizinhos dias antes de sua morte, ao qual VEJA teve acesso com exclusividade, ouve-se a voz dela implorando: “Catarina, Catarinaaaa, abre a porta, por favor, abre para mim”.
O golpe que sacudiu o universo das artes veio a público em 2022, quando se deflagrou a Operação Sol Poente, referência a um dos mais famosos quadros de Tarsila do Amaral, destaque da coleção, recuperado junto a outras treze obras de nomes como Di Cavalcanti e Victor Brecheret. Foi essa ação policial que levou à prisão de Sabine, Rosa e quatro parentes da cigana. Duas das telas roubadas pela gangue já haviam sido vendidas a Eduardo Constantini, fundador do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, o Malba.
À polícia, Geneviève relatou ter sido mantida presa por mais de um ano e denunciou Sabine e os outros por estelionato, extorsão e roubo. A trapaça teria sido orquestrada no início de 2020, quando a viúva de Boghici, dada ao misticismo, foi abordada na rua por uma mulher que se apresentou como médium e a conduziu a Rosa. A promessa é que fariam um “trabalho” por Sabine, que “corria sérios riscos”. De acordo com o Ministério Público, o encontro da viúva com a vidente não teve nada de fortuito: Sabine e Rosa, acusada de ludibriar mais vítimas em nome da fé, já mantinham contato antes.
No novo capítulo do assombroso enredo, chamam a atenção as circunstâncias em torno da trágica morte da herdeira de Boghici, ocorrida uma semana antes de prestar depoimento à Justiça. A própria mãe, que hoje vive sob escolta de segurança particular, acha que Sabine pode ter sido induzida a se matar. “Não sabemos se ela entrou na história por fé cega ou ganância, mas fato é que, em seus últimos meses, estava sendo controlada pela família da Rosa”, afirma Ary Brandão de Oliveira, advogado de Geneviève.
Passados seis dias de sua morte, a defesa da viúva encaminhou uma petição à polícia, na qual cita suspeitas de que a caçula de Boghici vinha sofrendo maus-tratos, sendo mantida presa e dopada. “Suas redes sociais foram bloqueadas, não tinha mais telefone e qualquer contato era pelo celular de Catarina, que ficava no viva voz”, contou a VEJA uma amiga de Sabine, que pediu anonimato. “Fiquei assustada quando tive uns minutinhos com ela no corredor do fórum, há alguns meses, antes de entrar numa audiência. Ela me disse que tudo o que comia estava com gosto amargo e tinha medo da Rosa.” Até mesmo o advogado de Sabine, Vanildo Junior, relata a dificuldade de conversar com a cliente a sós. “Sempre tinha alguém da família da Rosa ao lado dela. Reclamava, mas Sabine, estranhamente, não reagia”, lembra.
Apresentando-se na internet como atriz, dubladora e defensora dos animais, Sabine, junto com a mãe e uma irmã, era herdeira de uma fortuna estimada em 2 bilhões de reais. O patrimônio, ainda em inventário, se divide entre obras de arte amealhadas pelo pai (só as duas Tarsilas da coleção valem juntas 550 milhões de reais), imóveis no Rio e em Paris e uma conta na Suíça. A polícia também investiga a informação de que, pouco antes de sua morte, Sabine teria feito um testamento beneficiando o filho mais novo de Rosa, portador de um transtorno do espectro autista. A princípio, seu generoso quinhão da herança se destinará à cigana, situação que a família de Sabine se empenha em reverter. A corrida agora é para anular o casamento — do qual, aliás, nenhum amigo ou parente dela participou, causando estranheza aos mais próximos. Outro obscuro episódio dessa trama macabra que parece não ter fim.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862