Um ano depois do 8/1, 30 réus foram condenados a até 17 anos de prisão
Mais de 1 000 esperam por uma decisão
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As vidraças, a mobília, os equipamentos de trabalho e os objetos de arte das sedes dos três poderes da República foram restaurados ou repostos (a um custo milionário) após o quebra-quebra provocado pela turba que tomou conta de Brasília em 8 de janeiro de 2023. Os sinais, no entanto, são de que os reflexos da insanidade golpista irão se estender por muito tempo. Em dezembro, por exemplo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu não incluir os condenados pelos ataques no seu indulto de Natal. No mesmo mês, um empresário de Londrina, no Paraná, tornou-se o primeiro denunciado pela Procuradoria-Geral da República por financiar a horda antidemocrática. Os dois atos indicam não só que a batalha iniciada naquele triste domingo está longe do fim, mas que não haverá alívio a quem conspirou contra a democracia.
No curso daquele que é o maior julgamento da história do Brasil, nada menos que 1 406 pessoas foram denunciadas por associação criminosa armada, abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado. Trinta já foram condenadas, algumas a dezessete anos de cadeia. Um contingente de 1 121 acusados aguarda a possibilidade de fazer um acordo de não persecução penal — em troca de terem seus processos suspensos, ficariam proibidos de interagir em redes sociais e teriam que usar tornozeleira eletrônica. Um ano depois, 66 pessoas ainda estão atrás das grades em presídios da capital (veja o quadro).
![8-JANEIRO—JULGAMENTO-REUS-STF-2023-9-g.jpg FIRMEZA - O STF: Corte vem agindo com a agilidade e o rigor necessários](https://beta-develop.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/01/8-JANEIRO-JULGAMENTO-REUS-STF-2023-9-g.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
O repúdio generalizado à barbárie, até por parte da oposição mais civilizada, permitiu uma firme reação das instituições e assegurou o avanço das investigações e o julgamento dos envolvidos. Sob a guarda de Alexandre de Moraes, o caso avança com rapidez no STF. O ministro segue atuando com o rigor necessário diante do ocorrido, a despeito de algumas críticas de que a celeridade das ações penais estaria prejudicando a ampla defesa. A tramitação dos processos diretamente no Supremo, última instância do Judiciário, também engrossou a polêmica por minar as possibilidades de recurso, assim como as prisões preventivas, que muitos veem como desnecessárias ou ilegais. Grande parte dessas reclamações, diga-se, parte de setores ligados ao bolsonarismo. “Criou-se um clima de abuso de autoridade, um regime de exceção”, diz o deputado Marco Feliciano (PL-SP), apoiador do ex-presidente.
Na verdade, ao contrário do que defendem políticos como Feliciano, a tentativa de criar um regime de exceção partiu justamente dos que afrontaram as instituições no 8 de Janeiro, o que justifica plenamente o peso da espada da Justiça utilizado no caso pelo STF. “As pessoas ali sabiam o que estavam fazendo, não estamos falando de inocentes”, diz Pedro Serrano, doutor em direito do estado pela PUC-SP e um dos redatores de projeto que em 2021 impôs novas regras para terrorismo e permitiu colocar no banco dos réus quem atenta contra a democracia — por ironia, sancionado por Bolsonaro. Com o 8 de Janeiro, foi a primeira vez que o Brasil puniu um crime de golpe de estado — nem os responsáveis pela ditadura militar (1964-85) tiveram o mesmo destino.
A reação firme das instituições, de fato, era a única resposta possível à gravidade do ocorrido em 8 de janeiro. Para o subprocurador-geral da República, Carlos Frederico dos Santos, responsável pelas acusações, a resposta dada pelo sistema de Justiça serve para mostrar que episódios desse tipo não podem ser tolerados. “Nesse aspecto, a função pedagógica está sendo cumprida”, afirma. De acordo com ele, os casos seguem o rito processual convencional, com audiências de custódia, de instrução e alegações finais. A própria PGR pediu a liberdade de mais de setecentos acusados. Para a cientista política e professora da UFRJ Mayra Goulart, uma parte do estranhamento se deve ao fato de que a punição recaiu sobre pessoas “que não costumam sentir o braço punitivo do estado”, numa referência à grande quantidade de pessoas de classe média envolvidas nos tumultos. “A herança desse episódio é: quais são os limites de uma linguagem crítica, antipolítica, que se oponha ao Estado Democrático de Direito?”, afirma.
![000_336P9NM.jpg EM FLAGRANTE - Manifestantes detidos no Palácio do Planalto: 66 ainda continuam atrás das grades](https://beta-develop.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/01/000_336P9NM.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
Os desdobramentos judiciais não alcançaram ainda alguns envolvidos, já que dois braços da investigação estão em andamento. Um é o inquérito que apura os financiadores dos atos e que levou à denúncia contra o empresário Pedro Luis Kurunczi, de Londrina, acusado de usar 59 000 reais para levar quatro ônibus, com 108 pessoas, para Brasília. Outra frente é a que investiga políticos e integrantes de governos e que tramita sob sigilo. Nenhuma autoridade foi denunciada até agora, nem o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que era secretário de Segurança do DF na época dos ataques e ficou preso por 117 dias. O general Gonçalves Dias, o GDias, que chefiava o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e apareceu conversando com invasores do Planalto, chegou a ter o indiciamento pedido por uma CPI da Câmara Distrital do DF, mas foi poupado pela CPMI do Senado, onde foi alvo de radicais.
![20231126170443649_41.jpg PROTESTO - Avenida Paulista: ato bolsonarista lembra morte de um preso no DF](https://beta-develop.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/01/20231126170443649_41.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
Mesmo sem punições até agora, o quebra-quebra golpista já deixou muitos estilhaços na política. O bolsonarismo, por exemplo, foi duramente atingido. O episódio, repudiado até mesmo por pessoas que estiveram ao lado de Bolsonaro na eleição de 2022, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocou o ex-presidente politicamente na defensiva. E judicialmente pode lhe trazer complicações. Em dezembro, a PGR recuperou e enviou ao STF um vídeo que ele havia postado e apagado em janeiro no qual compartilhava a tese de que a vitória de Lula havia sido fraudada — a publicação foi anexada ao inquérito que apura se ele incitou a barbárie antidemocrática. Além disso, em outubro, o relatório final da CPMI do Senado pediu o indiciamento de Bolsonaro e mais de sessenta pessoas, entre militares, ex-ministros e empresários — os pedidos aguardam a análise da PGR. “Esse foi o segundo erro dos radicais. Primeiro tentaram dar um golpe, depois incentivaram a instalação de uma CPMI que os colocou no centro das investigações”, lembra o cientista político Cláudio Couto, da FGV. No final de novembro, o bolsonarismo levou a sua versão sobre o 8 de Janeiro para a Avenida Paulista, onde fez um protesto contra a morte do empresário Cleriston Pereira da Cunha, na Papuda, que aguardava julgamento.
![GONCALVES-DIAS—DEPOIMENTO-CPI—8-JANEIRO-2023-6-f.jpg NO ALVO - GDias na CPMI: envolvimento de autoridades ainda está em apuração](https://beta-develop.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/01/GONCALVES-DIAS-DEPOIMENTO-CPI-8-JANEIRO-2023-6-f.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
Já para Lula, o episódio tumultuou o início do seu governo, mas teve um lado positivo. Nos dias que se seguiram à intentona golpista, o presidente conseguiu reunir apoio político dos chefes dos poderes e dos governadores de todos os estados, incluindo adversários eleitorais. “O 8 de Janeiro serviu para fazer Supremo, Congresso e Executivo entenderem que tinham de criar um denominador comum se quisessem extirpar os radicais autoritários do jogo político”, diz Felipe Nunes, diretor do instituto de pesquisas Quaest e professor do Departamento de Ciência Política da UFMG. A depredação de prédios públicos contribuiu também para o discurso de Lula como fiador da democracia e ajudou o petista a construir pontes com aliados do ex-presidente no Congresso, como o próprio Lira e o Centrão. “O que aconteceu foi um episódio grotesco e lamentável para o país e que ainda deixou a oposição mais fragilizada”, reconhece o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP).
Apesar da resposta firme das instituições, é preciso permanecer em alerta. Pesquisa Datafolha feita em dezembro mostra que o apoio à democracia no país caiu de 79%, em outubro de 2022, para 74%. O mesmo levantamento mostra que 91% dos que votaram em Bolsonaro em 2022 não se arrependem de sua escolha. Também não custa lembrar que Donald Trump, acusado de incitar a invasão do Capitólio, sede do Congresso dos EUA, por não aceitar a derrota na eleição presidencial, é favorito para a eleição de 2024. Para especialistas, no entanto, o 8 de Janeiro servirá para estabelecer limites claros para a crítica política. “A impressão antes do 8 de Janeiro era de que valia tudo. O cenário mudou”, diz o cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV. Na segunda 8, Lula, os chefes do Congresso e ministros do STF farão o ato “Democracia Inabalada” para lembrar um dos mais graves ataques à democracia brasileira. Apesar da reação firme do país, não custa manter a vigilância.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874