Na manhã de 9 de julho de 2009, o pastor Felippe Daniel Hernandes, conhecido como Tid, então com 29 anos e 120 quilos, entrou no centro cirúrgico do Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, para debelar uma doença contra a qual lutava havia mais de uma década: a obesidade. Aquele seria seu último ato voluntário. Tid realizou uma operação chamada gastrectomia vertical com interposição ileal, em que se retira uma parte do intestino delgado. O método é usado tanto para combater o diabetes quanto para a perda de peso. Duas horas depois do procedimento, Tid sofreu uma severa hemorragia abdominal. Chegou a fazer três cirurgias nos trinta dias seguintes, até seu quadro evoluir para o estado vegetativo pela falta de oxigenação no cérebro. Sem consciência, viveu ainda por mais sete anos e 157 dias até morrer, em 14 de dezembro de 2016. Tinha 37 anos e pesava menos de 100 quilos.
Durante esse longo e doloroso período em que se manteve vivo por meio de ventilação mecânica e remédios, muita coisa acontecia fora da UTI de 20 metros quadrados do Hospital Albert Einstein, para onde foi transferido vinte dias depois da primeira e malsucedida cirurgia. Enquanto Tid agonizava em um leito hospitalar, seus pais, o apóstolo Estevam Hernandes e a bispa Sonia, fundadores da Igreja Renascer em Cristo, percorriam um calvário. Travaram uma acirrada briga judicial com os médicos, o plano de saúde, a mulher do filho e — na maior das batalhas — lutavam para manter viva a igreja que fundaram em 1986.
Os religiosos entraram com uma ação contra os cirurgiões Antônio Macedo e Áureo Ludovico, responsáveis pela operação. Ambos são respeitadíssimos em sua atividade. Macedo foi quem atendeu Jair Bolsonaro, então candidato, ao ser transferido de Juiz de Fora para o Einstein, em São Paulo, depois de ser vítima de uma facada, em setembro de 2018. Macedo também cuidou da delicada retirada da bolsa de colostomia do presidente, logo após a posse, em janeiro. Ludovico, por sua vez, operou o ex-jogador de futebol e ex-senador Romário e o apresentador Faustão, submetidos ao mesmo método aplicado em Tid.
O casal Hernandes alega que cometeu um erro primário: seu filho simplesmente não poderia ter feito o procedimento devido ao histórico de saúde. “Eles ignoraram tratar-se de um paciente inapto para tal procedimento”, diz Hernandes (leia entrevista). O histórico de Tid incluía dois transplantes renais, uma cirurgia bariátrica, um AVC e um stent no coração. A Justiça deu razão ao casal e condenou os dois médicos em primeira instância. “É evidente que o tratamento cirúrgico prescrito foi inadequado, considerando-se o extenso quadro de doenças preexistentes e o risco exagerado que tal cirurgia traria à saúde do paciente”, escreveu a juíza Paula Velloso Rodrigues Ferreri em sua sentença de maio de 2018. Cada médico foi multado em 60 000 reais. O casal da Renascer contesta. Pede indenização de 3,7 milhões de reais, mas considera o valor irrisório diante da perda do filho. Em sua defesa, Ludovico alega ter atuado como “médico auxiliar” e diz ter conhecido o paciente na mesa de cirurgia. “O fato de Tid ter apenas um rim não o impedia de ser anestesiado e operado”, disse ele a VEJA. Ludovico credita o quadro vegetativo a uma crise de hipoglicemia, quando Tid já estava na UTI em decorrência da hemorragia. Ele atribui o agravamento do quadro ao Hospital Oswaldo Cruz, que, por sua vez, foi inocentado pela Justiça. Procurado por VEJA, Macedo não quis se manifestar.
O casal Hernandes também brigou com o plano de saúde, o Bradesco, pedindo que arcasse com o tratamento contínuo — e ganhou. Os sete anos e meio dentro de uma UTI custaram, pelo menos, 5,4 milhões de reais. Houve ainda uma guerra particular contra Danielle Azar, mulher de Tid. Com o marido em quadro vegetativo irreversível, ela pediu o divórcio em 2012. Os bens foram divididos (Danielle ficou com alguns imóveis e carros) e acertou-se uma pensão alimentícia de 29 000 reais mensais. Tempos depois, Estevam e Sonia entraram com uma ação para que a nora comprovasse os gastos. As partes chegaram a um acordo e, hoje, convivem bem. Estevam Hernandes (cujo nome é uma homenagem ao avô), o único filho de Tid e Danielle, tem hoje 14 anos.
Tid entrou em coma justamente quando carregava sobre os ombros a missão de tirar a Renascer do atoleiro. Hernandes e Sonia foram presos nos Estados Unidos por evasão de divisas e perderam seu fiel mais midiático — o ex-jogador de futebol Kaká, que atuava como garoto-propaganda informal da Renascer. Também enfrentaram na Justiça processos por calote no aluguel dos prédios dos templos. Seis meses antes de Tid ser operado, o teto da sede paulistana da igreja desabou, matando nove pessoas. Havia um declínio, que se acelerou durante a estada de Tid no hospital. A Renascer passou de 1 300 templos no Brasil e no exterior em 2009 para os atuais 300, embora seus dirigentes digam que há muito mais. Alguns dos que restaram abertos ficam vazios, mesmo em dias de culto.
A solução de sobrevivência foi apostar nos eventos, que se mantêm bastante atraentes, como o chamado MMA cristão. Há também o site de e-commerce Gospel Bay, plataforma de venda de roupas, canecas e livros. Mas o principal destaque da Renascer ainda é a Marcha para Jesus, parada evangélica que reúne líderes e fiéis de denominações como Assembleia de Deus, Igreja Batista, Quadrangular e Universal. “No olhar dos frequentadores da marcha, ela nasceu como um caminho para quebrar maldições e libertar as cidades de demônios territoriais, mostrando a autoridade de Jesus”, diz Ricardo Mariano, pós-doutor em sociologia da religião pela Universidade de São Paulo.
Nasceu desse modo e virou uma força política. Estevam Hernandes esteve em março no Palácio do Planalto em audiência com Jair Bolsonaro, que se comprometeu a participar da passeata de 20 de junho, em São Paulo, ocasião em que se espera a presença de 1,5 milhão de pessoas. O presidente retribuirá o empenho de Hernandes, que durante a campanha foi seu cabo eleitoral. A Renascer pediu a seu time de pastores que defendesse o voto em Bolsonaro. Quem não atendeu à demanda ganhou punição severa: o pastor Danilinho Bernassi, de São Bernardo do Campo, por exemplo, foi expulso por se recusar a apoiar o candidato do PSL.
E resta à Renascer, combalida, pregar e vivenciar o que a fez grande — a Teologia da Prosperidade. Sonia se veste de grife da cabeça aos pés e mostra um fraco por saltos vertiginosos na cor rosa-choque. Ela adora joias e carros importados. Hernandes não fica atrás. Recentemente, adotou cabelo e barba em tons claros para disfarçar os fios brancos. O casal tem outros dois filhos, Fernanda, a “bispa Fê”, e Gabriel, rapper gospel. “Não é verdade que ninguém é insubstituível. Eu sinto falta do Tid todos os dias, em todos os momentos”, diz Hernandes.
Publicado em VEJA de 15 de maio de 2019, edição nº 2634
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