A cada 36 horas, ao menos uma mulher é vítima de feminicídio em São Paulo. O número de assassinatos registrados já no boletim de ocorrências como derivados de violência doméstica ou por “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” aumentou nos três últimos anos. Em 2016, 70 mulheres foram mortas e esse número dobrou no ano passado, sendo registrados 148 óbitos pelo mesmo motivo.
Os dados foram levantados com base em boletins de ocorrência da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado. Mesmo assim, especialistas afirmam que o número de casos deve ser maior, porque a tipificação nem sempre é apontada no registro. “É obrigatório constar no boletim se a pessoa foi morta por feminicídio. Mas nem todos os funcionários da Justiça e da própria delegacia se atualizaram em relação a isso. Na dúvida, fica só o registro de homicídio”, afirma Luiza Nagib Eluf, advogada criminalista e procuradora aposentada.
O número de casos de feminicídio em São Paulo representa 27% do total de assassinatos de mulheres (548), o que não inclui latrocínio (roubo seguido de morte) e homicídio culposo (sem intenção). O número é semelhante à média nacional de 24,8% (1.133 feminicídios no total), de acordo com o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com dados de 2017.
Pesquisadora da entidade, Cristina Neme pontua que o porcentual está abaixo das estimativas dos especialistas em segurança de que feminicídios respondem por pelo menos metade do total dos assassinatos de mulheres. “Hoje há maior percepção em relação ao fenômeno, um maior cuidado no registro do dado. Com a investigação, (o número) tende a aumentar”.
De 2015, a Lei do Feminicídio transformou esse tipo de homicídio em crime hediondo, com pena de 20 a 30 anos de reclusão e que pode ser aumentada de um terço à metade em determinados casos (como quando a vítima é gestante, por exemplo). Lançadas em 2016 pela Organização das Nações Unidas Mulheres (ONU Mulheres) e pelo governo brasileiro, as Diretrizes Nacionais do Feminicídio apontam que toda investigação da morte ou tentativa de morte de uma mulher com indícios de violência deve ter a “perspectiva de gênero” como um dos principais enfoques.
Em nota, a SSP afirma que os delegados passaram a incluir a qualificadora de feminicídio já em 2015 e que o assunto foi abordado em treinamento no ano seguinte. Diz ainda que “em muitos casos” só é possível determinar a motivação durante as investigações. Além disso, reitera que criou, em 2018, o Protocolo Único de Atendimento, “que estabelece um padrão de atendimento para melhor acolher as vítimas e aprimorar as investigações e coleta de provas”.
Perfis
O levantamento revela diferenças no perfil das vítimas de feminicídio em relação às mortes das mulheres em geral. Em 66% dos feminicídios identificados nos boletins de ocorrências nos últimos três anos, a mulher foi morta dentro de casa. O padrão é diferente da média dos assassinatos de mulheres, em que 64% das vezes acontece em via pública.
Segundo Valéria, o feminicídio é um “crime muito particular, que quase sempre tem uma assinatura”. Em geral, afirma, o assassinato é motivado pela não aceitação do rompimento do relacionamento com a vítima ou por ciúmes. Além disso, costuma ter “grande crueldade”, como repetição de golpes. “Por isso, a necessidade de a investigação ser direcionada, para que esses aspectos não deixem de ser notados.”
Para especialistas, grande parte dos feminicídios é uma “morte anunciada”. Estudo do Ministério da Saúde mostra que três a cada dez mulheres já tinham histórico de agressão antes de serem mortas.
Este foi o caso de Daniele Cândido, de 21 anos, que foi estrangulada e morta pelo marido em outubro de 2018, em Votorantim, a 96 km da capital. O porteiro Danilo Cândido Costa, de 27 anos, irmão de Daniele, conta que não se conforma de ter deixado passar em branco o primeiro tapa no rosto que ela recebeu, há três anos. “Foi a primeira vez que ele a agrediu, e a gente deixou pra lá porque ela deu razão ao marido”, lamenta. Preso no dia seguinte ao assassinato, o rapaz confessou o crime e alegou que eles haviam brigado porque ela sentia muito ciúmes.
Também em Votarantim, na mesma época, Geovanna Crislaine Soares da Silva, de 17 anos, foi assassinada pelo ex-namorado na véspera do segundo turno das eleições. O rapaz se apresentou à polícia e assumiu o crime, mas não ficou na cadeia – como ele se entregou 12 horas após o crime, não foi configurado flagrante. Pela lei, ninguém pode ser preso, a não ser em flagrante, cinco dias antes nem 48 depois do pleito.
A dona de casa Cristina Aparecida Soares, de 34 anos, mãe da adolescente vítima de feminicídio, mobiliza as redes sociais contra os crimes do gênero e pede justiça pelo caso de sua filha. Ela conta que velava o corpo da filha quando soube que o assassino tinha sido liberado. À mãe, não bastou. Ao saber que o inquérito estava parado em razão das férias da delegada, ela confeccionou camisetas com a foto da filha e foi com um grupo à frente da delegacia. Depois, rumou até o fórum e falou com o promotor criminal. A ordem de prisão foi expedida.
O acusado do crime, Jackson da Silva Santos, de 21 anos, morava no mesmo bairro e era tido pela família dela como um rapaz bom. “Ele trabalhava numa reciclagem e passaram a se encontrar, depois o relacionamento ficou mais sério. Com o passar do tempo, ele começou a beber demais, até que minha filha deu um basta”, afirma a mãe. Ela diz que Santos não aceitava a separação e havia tentado matar sua filha alguns dias antes, mas a menina não contou.
Foi um vigia que surpreendeu Santos perseguindo a jovem e desferindo facadas, numa estrada no bairro vizinho. O rapaz fugiu, deixando o carro no local. Conforme a mãe, sua filha foi morta com 11 facadas. A defesa do rapaz, que está preso, informou que só se manifestará no processo.
(Com Estadão Conteúdo)