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A briga submersa em torno dos tesouros do mítico galeão San José

Riquezas são alvo de uma guerra fria — de quem é o butim? — nas profundezas do Pacífico

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 9 jun 2024, 08h00

Depois que Cristóvão Colombo aportou na ilha de Hispaniola (hoje Haiti e República Dominicana), em 1492, a ocupação das Américas pela Coroa espanhola tornou-se uma história de invasões e pilhagens. Nesse cenário, o galeão San José, lançado ao mar em 1698, se tornou um dos protagonistas daqueles tempos: com 40 metros de comprimento, três velas e 64 canhões, era a embarcação mais apropriada para transportar o butim. Em 8 de junho de 1708, contudo, deu-­se o inesperado. Interceptado pela esquadra do corsário Charles Wager, quando partia do Panamá em direção a Cartagena, na Colômbia, submergiu entre o Pacífico e o Caribe, levando ao fundo 589 tripulantes e uma carga avaliada, a valores atuais, em 20 bilhões de dólares.

Durante 300 anos, o San José foi dado como perdido. Até que, em 2015, a Marinha colombiana encontrou os restos da embarcação e mostrou em um vídeo os destroços, no leito do Mar do Caribe. Desde então, veio à tona uma briga de proporções continentais, cada lado ancorado em sua razão. A empresa americana Sea Search Armada disse ter encontrado o que sobrou do galeão em 1981, tendo compartilhado a localização do navio com o governo colombiano em troca de 35% do ouro, da prata e das pedras preciosas do naufrágio. O pacto, no entanto, foi anulado pelo Parlamento, gerando grande imbróglio jurídico. A Coroa espanhola e grupos indígenas também reclamam parte das riquezas encontradas.

SANTO GRAAL - No fundo do mar: um século de buscas
SANTO GRAAL - No fundo do mar: um século de buscas (Reprodução Armada de Colombia/.)

Agora, quase uma década depois do primeiro anúncio, a novidade: a Colômbia finalmente decidiu o que fazer. “Isto é um naufrágio arqueológico, não um tesouro”, disse o ministro da Cultura, Juan David Correa, ao anunciar a expedição de estudo e resgate da embarcação, que teve início no fim de maio. Em movimento de defesa da soberania nacional, o país ainda definiu o polígono dos destroços como Área Arqueológica Protegida da nação. “Eis aí um verdadeiro exemplo para todos os países em desenvolvimento”, disse a VEJA o arqueólogo Gilson Rambelli, professor da Universidade Federal do Sergipe e membro do Comitê Internacional para Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático. “Nos países desenvolvidos isso já está resolvido, mas por aqui nós ainda precisamos defender o patrimônio científico atacado por empresas que veem esses locais apenas como minas de ouro.”

O presidente colombiano, Gustavo Petro, espera que o resgate seja concluído até 2026. É uma quimera, e para lá de otimista, já que as dificuldades técnicas se sobrepõem aos embaraços diplomáticos. A profundidade de 600 metros impede mergulhos humanos. A solução: tecnologias como os veículos remotamente operados, com sensores e garras que possam fazer o trabalho. “Para a arqueologia, contudo, há riscos, já que os materiais submersos são muito sensíveis”, diz o arqueólogo e mergulhador Luis Felipe Santos, presidente do instituto AfrOrigens, projeto que busca navios escravagistas naufragados na costa brasileira. Somem-se ainda os riscos de destruição imediata de objetos metálicos, de cerâmica e madeira, fadados a deteriorar-se rapidamente. “A preservação in situ, debaixo d’água, deve ser considerada a opção prioritária antes de ser iniciada qualquer intervenção nos sítios arqueológicos”, diz Daniel Martins Gusmão, encarregado da Divisão de Arqueologia Subaquática da Marinha do Brasil.

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Mapa Colômbia

É aventura histórica que singra as fronteiras colombianas. A Unesco, órgão das Nações Unidas que zela pelo patrimônio histórico mundial, e grupos de arqueólogos expressaram preocupação com o manuseio dos tesouros. Trata-se, contudo, de problema que pode ser adiado, ao menos por ora. O plano de exploração divulgado pelo Instituto Colombiano de Antropologia e História, chamado, espirituosamente, de Hacia el Corazón del Galeón San José (Em Direção ao Coração do Galeão San José), conta com seis fases que, por enquanto, colherão apenas imagens, como registro de documentação do naufrágio. Portanto, convém um pouco de calma, como faz “o velho marinheiro que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar”. Levará anos até que essas peças possam contar um capítulo da civilização dos anos 1600 e 1700. Até lá, há o que comemorar: a vitória da ciência e do conhecimento, capazes de enxergar o passado — apesar da ganância, apesar da guerra fria — nas profundezas do mar azul.

Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896

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