A descoberta de navio naufragado que pode ter sido da frota de Vasco da Gama
Uma das possibilidades é que destroços achados no litoral do Quênia sejam do galeão São Jorge, que participou da última expedição do navegador português

Foi próximo à vila de Ngomeni, no litoral do Quênia, que pescadores revelaram um segredo submerso. A 6 metros de profundidade, arqueólogos encontraram os restos de um galeão de proporções impressionantes, envolto por recifes de coral, que pode ser o São Jorge, uma das vinte embarcações da última expedição de Vasco da Gama. O navegador português, protagonista de viagens que marcaram tanto a história do comércio global quanto a da exploração colonial, morreu em 1524, durante a jornada exploratória. Agora, os vestígios do naufrágio oferecem uma chance de lançar luz sobre um capítulo complexo da era das grandes navegações.
Os robustos madeirames de 20 centímetros de espessura encontrados e os artefatos recuperados — entre eles presas de elefante e lingotes de cobre — reforçam a hipótese de que os restos podem ser mesmo do São Jorge, uma nau de dimensões exageradas. “O conjunto é um grande sítio arqueológico”, disse a VEJA Caesar Bita, chefe do Departamento de Arqueologia Costeira do Museu Nacional do Quênia. “As características indicam ser mesmo um galeão português, do tipo que foi introduzido apenas cinco anos antes da derradeira travessia de Vasco da Gama.” A embarcação ajuda a decifrar o impacto das expedições marítimas, que, sob a bandeira do comércio, abriram caminho para dinâmicas de exploração e saques das regiões percorridas há 500 anos.

Embora empolgante, a hipótese não é definitiva. Registros históricos mencionam outro naufrágio na mesma região, o da Nossa Senhora da Graça, perdido em 1544. Ainda assim, a localização do São Jorge em águas quenianas faz sentido histórico. Durante sua última jornada, Vasco da Gama navegava com propósitos político e econômico: garantir o controle português sobre o comércio de especiarias na rota para a Índia, consolidando uma rede lucrativa que muitas vezes dependia da exploração violenta de recursos e de populações locais. Além do mais, a construção revela a engenharia marítima do início do século XVI, período em que os portugueses expandiam sua presença global por meio de embarcações resistentes e adaptadas a longas viagens oceânicas. “Esses navios eram projetados sem desenhos, sem plantas, baseados apenas em proporções matemáticas e na experiência dos mestres de carpintaria”, diz Bita. “A robustez do madeirame reflete a necessidade de resistência contra os desafios do Índico, como tempestades e recifes.”
Outro aspecto ressaltado pelos pesquisadores é a integração entre o trabalho científico e a comunidade de Ngomeni, perto de onde estão os vestígios. “Durante a pesquisa, pescadores foram treinados em técnicas de mergulho e participaram diretamente das escavações, fortalecendo a conexão entre a preservação histórica e a população local”, afirma o arqueólogo queniano. Essa colaboração não apenas garante a proteção do sítio, como também estimula o desenvolvimento social e econômico da região. O governo do Quênia, em parceria com instituições e comunidades da região, tomou medidas para proteger os destroços. A criação de um museu subaquático é uma meta de longo prazo, prometendo transformar Ngomeni em um polo cultural e turístico.

O projeto do galeão intriga e emociona pesquisadores pela falta de dados sobre a arquitetura das embarcações daquela época. “Sabemos pouco sobre os detalhes das naus e galeões portugueses daquele período. A arqueologia é nossa melhor chance de reconstruir esses gigantes do mar”, afirma o pesquisador. Essa lacuna histórica torna o naufrágio de Ngomeni uma oportunidade única e inescapável de entender as práticas navais.
O impacto do naufrágio ultrapassa a curiosidade enciclopédica. A descoberta reafirma a relevância de manter financiamento e interesse por pesquisas arqueológicas marítimas. Situações semelhantes no Brasil, como o estudo do brigue Camargo, mostraram como investigar os destroços de embarcações pode revelar muito mais do que seu próprio passado. O barco, que transportava africanos escravizados de Moçambique para o Brasil, em 1852, foi incendiado pelo traficante Nathaniel Gordon após a criminalização do tráfico. Recentemente, a iniciativa AfrOrigens, com apoio financeiro internacional, começou a estudar seus vestígios no litoral de Angra dos Reis. No caso do São Jorge, os artefatos encontrados sugerem conexões comerciais entre África e Europa no início do século XVI, alimentadas pelo furto de recursos naturais como o marfim.
A revelação, ainda que não seja totalmente confirmada, traz também reflexões sobre o peso da memória. Assim como o brigue Camargo resgatou o debate sobre o tráfico de escravizados no Brasil, o São Jorge, insista-se, pode traduzir o impacto das grandes navegações na exploração de recursos e povos em territórios africanos. Com a preservação da história garantida, resta transformar essas narrativas em aprendizado. Afinal, explorar o fundo do mar não é apenas escavar o passado: é instalar novas luzes para o nosso presente.
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2025, edição nº 2925