A morte para a criança
Dois novos documentos científicos dão orientações sobre como falar de um assunto tabu, o fim inexorável
Tratar do fim da vida com uma pessoa que está apenas no começo da existência é um dos grandes dramas da condição humana. Haveria um pai, uma mãe e mesmo um psicólogo ou médico completamente preparados para confortar uma criança com um diagnóstico terminal? Há ainda um tabu quase incontornável mesmo para anunciar a morte de uma pessoa próxima. A psicóloga Erika Pallottino, coordenadora do Instituto Entrelaços, do Rio de Janeiro, tem uma frase cortantemente singela para resumir o que ocorre: “O adulto tem dificuldade enorme em lidar com o sofrimento infantil e tende a proteger as crianças da verdade”. Mas, aos poucos, está ocorrendo uma mudança comportamental — e a má notícia começa a ser anunciada aos pequenos de modo mais assertivo, ainda que igualmente doloroso.
Dois artigos recém-publicados na revista britânica The Lancet trazem orientações valiosas para lidar com a situação. Sugerem novas diretrizes para conversar com crianças e adolescentes sobre a morte e doenças que ameaçam a vida. Um dos documentos é voltado para comunicar à própria criança que ela está doente. O outro aborda como deve ser a conversa quando os pais é que estão muito doentes. Ambos os textos são destinados a médicos, mas podem ser úteis para qualquer pessoa. Dada a relevância da The Lancet, os conselhos tendem a ser adotados pelas principais organizações médicas dos EUA e da Europa.
A situação, embora difícil, não é incomum. Milhares de crianças e adolescentes ao redor do mundo são diagnosticados com problemas graves. Tome-se o câncer como exemplo. Das 300 000 crianças que recebem a notícia da doença a cada ano, 20% morrem. Outra estatística: nos Estados Unidos, 2,8 milhões de jovens com menos de 18 anos vivem em uma família em que o pai ou a mãe tem câncer e, portanto, precisa suportar as agruras dos tratamentos. “Os profissionais de saúde deveriam servir como um suporte para os pais, para ajudá-los a comunicar-se com as crianças, mas nem todos estão preparados”, afirma a anestesista Ana Paula Santos, diretora do Cuidar Ativo, centro de controle de dor e terapias integrativas. “Poucos recebem orientação e treinamento para falar sobre a morte.”
Os documentos divulgados agora dão exemplos claros de como o tema deve ser abordado. “Para as crianças, a compreensão do conceito de morte ainda está em construção”, diz a psicóloga Luciana Mazorra, do Instituto Quatro Estações, em São Paulo. Apenas a partir dos 5 anos elas começam a entender que o fim é irreversível, e por isso doloroso. E é depois dos 10 anos que compreendem a inevitabilidade da morte. Do ponto de vista de meninas e meninos acamados, as evidências científicas demonstram que o conhecimento sobre uma doença ajuda na adesão ao tratamento médico (e, portanto, aumenta a sobrevivência).
A falta de comunicação objetiva — seja para um paciente, seja para quem convive com um parente ou pessoa próxima claramente à beira da morte — amplia sintomas como ansiedade e depressão. Quando não são informados sobre o problema (a própria doença ou a enfermidade de um familiar), os pacientes jovens podem ter reações diferentes. No caso dos adolescentes, pode ocorrer revolta pela quebra da relação de confiança. No que diz respeito aos menores, o risco é que comecem a fantasiar sobre o que está acontecendo de verdade. No pior dos mundos, podem achar, inclusive, que a culpa é deles.
A filosofia em torno do compartilhamento de informações sobre o fim inexorável mudou drasticamente. Até os anos 1960, a prática predominante era esconder o diagnóstico inclusive de um adulto, para protegê-lo de maiores sofrimentos. Mais recentemente, houve uma guinada ao descobrir-se a importância de dar a informação verdadeira. As regras ainda não estão estabelecidas. A abordagem, é claro, depende de cada caso. Mas os novos manuais ajudam a iluminar essa escuridão.
Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628
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