A ousada proposta de cientistas para a criação de um cofre na Lua para apocalipse
Depósito seria usado para salvaguardar células vivas de seres terrestres e, assim, protegê-las de uma eventual catástrofe no planeta
Em 2001, um grupo internacional propôs a criação de um grande depósito que pudesse salvaguardar grãos de todo o mundo. Diante dos crescentes conflitos globais e de um cenário de crises climáticas, a ideia saiu do papel sete anos depois, com a inauguração, na Noruega, do Silo Global de Sementes de Svalbard — também conhecido como Cofre do Apocalipse. A rede de túneis, encravada no permafrost em Svalbard, no norte da Europa, em uma montanha a 1 300 quilômetros do Polo Ártico, foi construída para durar ao menos dois séculos e proteger milhões de sementes de terremotos, explosões e dos efeitos das alterações do clima. Agora, contudo, há dúvidas a respeito da capacidade do local para resistir intacto.
O sistema foi posto à prova em 2017, quando um inverno inusualmente quente, consequência do acelerado aquecimento global, causou um alagamento que colocou em risco espécies preservadas no cofre ártico. Não houve prejuízos, mas o acidente inspirou ideias dignas de ficção. Em recente artigo publicado no BioScience, periódico científico da Universidade de Oxford, pesquisadores americanos de Harvard e do Instituto Smithsonian propõem a criação do que chamaram de biorrepositório lunar, um almoxarifado cósmico da vida terrestre. “No futuro, nós precisaremos de depósitos muito mais seguros”, defende a autora, Mary Hagedorn, pesquisadora do Instituto Havaiano de Biologia Marítima.
A proposta é ousada: aproveitar uma das crateras no polo sul da Lua, onde as temperaturas se aproximam de 200 graus negativos, para instalar um cofre que não precise de humanos ou de energia para proteger os valiosos itens. Nesse caso, não se trata só de sementes, mas de células vivas de seres fundamentais para a nossa biodiversidade — serão dezenas de coleções de células de bactérias, corais, plantas, insetos, aves e mamíferos, todas prontas para serem clonadas e fecundadas no caso de uma catástrofe global.
Parece algo afeito apenas à ficção científica, impossível de ser realizado. Do ponto de vista técnico, contudo, o projeto não significa nenhum absurdo. Enquanto Estados Unidos e China propõem missões tripuladas permanentes no nosso satélite natural ainda na próxima década, missões anteriores já trataram da engenharia necessária para a construção de um desses biorrepositórios.
O verdadeiro desafio é geopolítico. Em um mundo cada vez mais polarizado, que enfrenta crises simultâneas, não será fácil reunir nações em torno de um objetivo de longo prazo e extremamente caro. Além disso, há os conflitos éticos. Políticas internacionais de proteção planetária buscam defender a Terra de qualquer contaminação por formas extraterrestres de vida. Para alguns cientistas, o contrário também deveria ser assegurado.
Apesar das dificuldades, as motivações por trás da proposta merecem toda a atenção. Existem atualmente 1 700 desses bancos espalhados pelo mundo. Enquanto o maior deles é ameaçado pelo derretimento do solo congelado, o permafrost, outros são destruídos por guerras, como a da Ucrânia, ou ameaçados por conflitos civis, como na Síria. Ainda assim, há quem defenda, literalmente, manter os pés no chão. “Lua e Marte não são opções para os seres humanos”, diz Mauro Galetti, ecologista, escritor e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “A melhor solução é resolver os problemas da Terra, em especial as desigualdades e a crise ambiental.”
Não é o caso de abrir mão das opções que temos. Também para a pesquisadora Mary Hagedorn, é mais urgente agir por aqui, começando pela educação e pela preservação do ambiente que nos alimenta e mantém vivos. “Agora, é inegável que precisamos de planos B, C e D”, afirma a cientista americana. Hagedorn faz parte do seleto grupo de pesquisadores que começou a planejar os primeiros testes para estudar a viabilidade de células e equipamentos no espaço. Nunca é demais usar a ciência para entender melhor de onde viemos, onde estamos e para onde poderemos ir.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906