As nuvens ameaçadoras que escureceram São Paulo em 19 de agosto do ano passado foram, em grande parte, consequência da retórica simplista do governo federal de pôr a defesa do meio ambiente contra o desenvolvimento. Trata-se de uma falsa dicotomia. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — respeitado mundialmente — afinal estava correto em prever o aumento da destruição da floresta. Os incêndios que produziram a fumaça foram algo como uma queima sem sentido de livros, daquelas feitas por ditadores do século XX. Foi um ato que eliminou espécies da biodiversidade, a grande maioria delas ainda desconhecida pela ciência.
Essas espécies tinham o potencial de se transformar em enorme benefício a humanos — a exemplo dos inibidores de enzima, descobertos pelo Instituto Butantan, de São Paulo, a partir de pesquisas feitas com jararacas, que servem para o tratamento da hipertensão. A Amazônia é, enfim, uma biblioteca para as ciências da vida e também base de incríveis oportunidades econômicas.
Vivemos um momento em que o impacto da humanidade sobre o ambiente e outros seres vivos não tem precedentes. Relatório das Nações Unidas prevê a extinção de 1 milhão de espécies, se as tendências atuais continuarem no mesmo ritmo, com os efeitos das mudanças climáticas. O cenário poderá ser ainda mais grave. No entanto, nada disso é inevitável, contanto que reconheçamos que o planeta vivo, e não morto, é essencial para o bem-estar humano. Podemos nos controlar, em favor das gerações futuras.
As tendências recentes têm revelado a redução do orçamento para fins de preservação, em consequência da retórica agressiva do governo brasileiro, que incentiva o desmatamento. Portanto, a extensão dos incêndios não é uma surpresa. Não há sentido em voltar à situação dos anos 1980, que atingiu um pico dramático com o assassinato de Chico Mendes, líder ambientalista e chefe dos seringueiros, pouco antes do Natal de 1988.
Há outros oito países que compõem 40% da Floresta Amazônica. Só que, com 60%, o Brasil está em posição de liderança, papel que exerceu bem durante três décadas. De todo modo, ninguém espera que o país suporte o fardo da proteção e do desenvolvimento sustentável sozinho.
Não é a primeira vez que as florestas brasileiras estão na agenda do G7. Em Houston, em 1990, o Programa Piloto do G7 para as Florestas Tropicais Brasileiras foi criado e depois gerenciado pelo Banco Mundial. Outros recursos significativos, públicos e privados, surgiram em seguida, incluindo o Fundo Amazônia. O Brasil também assumiu um papel relevante, globalmente, ao sediar a Cúpula da Terra (Eco 92) e a Rio + 20, em 2012. A agenda de meio ambiente e desenvolvimento sustentável tornou-se marca importante. Os meses finais de 2019 estilhaçaram o respeito conquistado, e uma saída, a partir de 2020, é reconhecer as chamas da Amazônia como um sinal de alerta.
O desenvolvimento sustentável é simples no conceito, mas complexo na implementação. Ainda mais na Amazônia, por ela funcionar como um sistema integrado. Na década de 70, o cientista brasileiro Enéas Salati demonstrou em um estudo brilhante que a floresta produz metade da própria chuva. A questão desde então tem sido quanto o desmatamento fará com que esse ciclo hidrológico se degrade e transforme parte do bioma em vegetações parecidas com as do cerrado. A consequência seria uma perda impressionante de carbono e biodiversidade.
A soma do desmatamento com o uso extensivo de fogo, além das mudanças climáticas, nos leva ao limite, à destruição de cerca de 20% do bioma. É o que está próximo de ocorrer. O atual governo federal pode entrar para a história como herói ou vilão, a depender do curso de suas políticas. Um reflorestamento significativo, consistente com os compromissos do Acordo de Paris, ainda pode recuperar a floresta. Nesse ponto, o caminho sensato para todos os países amazônicos é equiparar qualquer novo desmatamento com o triplo de reflorestamento.
É necessário ter uma nova visão para o desenvolvimento da Amazônia, que faça sentido tanto ecológico quanto econômico. A maioria dos projetos de infraestrutura tem conceitos antigos, e eles não mudaram muito nos últimos cinquenta anos. Normalmente, resultam em ocupação desenfreada, desmatamento e degradação. A construção de estradas, entre outras atividades, tende a fragmentar a floresta e, em seguida, estimular sua devastação. É necessário ter uma infraestrutura sustentável que respeite os sistemas naturais. Uma nova linha de transmissão de Manaus a Roraima, por exemplo, pode acompanhar a rodovia já existente em vez de atravessar florestas e territórios indígenas. Fronteiras com outros países estão mais bem protegidas com reservas indígenas do que com estradas que facilitam o tráfico ilegal de drogas e de ouro, junto à poluição por mercúrio.
“Em vez de invejar os índios e suas reservas demarcadas, por que não torná-los parceiros na exploração?”
Cidades sustentáveis que proporcionam qualidade de vida fazem parte da solução. O governador do Amazonas, Wilson Lima, entende que a zona livre de Manaus é o que torna possível a cobertura florestal do maior estado do Brasil. Os peixes da Amazônia têm importância tremenda na aquicultura, com potencial para ser reconhecidos mundialmente, como o atum e o bacalhau. A pesca sustentável é comprovadamente bem-sucedida quando as comunidades têm o controle de seus recursos e proteção contra atividades predatórias.
As florestas de várzea são tão extensas que 20% da Amazônia é basicamente pântano. Elas são essenciais para a sobrevivência de diversos peixes. Os povos tradicionais aprenderam a administrar a agricultura, trabalhando a terra quando o rio está baixo e as margens são cobertas com novos nutrientes vindos dos Andes. É necessário um plano de gerenciamento abrangente dessas áreas.
Melhorar a produtividade da agricultura convencional existente também deve ser uma prioridade. Há anos a Embrapa demonstrou que é possível duplicar a produção de gado amazônico em metade da terra já em uso. O governador paraense Helder Barbalho afirmou que o Pará não precisa cortar uma única árvore para melhorar a pecuária.
A Amazônia contém uma enorme quantidade de carbono — até 100 bilhões de toneladas. A humanidade está lutando para limitar o aquecimento global a 1,5 grau. O carbono remanescente nos sistemas naturais é parte decisiva para alcançar o objetivo. Se o planeta perder uma quantidade da Amazônia, será inviável chegar lá.
Embora esse seja um componente fundamental da agenda de mudanças climáticas do planeta, é importante lembrar que o Brasil não está imune a elas. Preocupações sobre o nível do mar são muito reais para um país com praias incríveis. Portanto, a proteção da Amazônia para frear os danos das mudanças climáticas é claramente essencial para o próprio Brasil.
Felizmente, o país, por meio da colaboração internacional, pode salvaguardar essa parte do ciclo global do carbono. Mas o incrível valor adicional é proteger a biodiversidade amazônica. Avaliar a Amazônia apenas por seu carbono é como avaliar um chip de computador por seu silício. A riqueza biológica é o maior valor que poderia beneficiar o Brasil, além de qualquer outra coisa imaginada pela lente de desenvolvimento convencional. Essa visão apareceu e desapareceu, e recentemente voltou a ser vocalizada pelo cientista Carlos Nobre. A chave para liberar esse potencial biodiverso é o investimento em ciência e a colaboração com a indústria. Os povos indígenas exploram esse potencial há milênios. Foi assim que a ciência médica aprendeu sobre curare e quinino. Em vez de invejá-los por suas reservas demarcadas, por que não explorar maneiras de tornálos parceiros na exploração desse potencial, por exemplo?
A forma visionária para avançar é abraçar os benefícios da Amazônia. A primeira escolha da comunidade internacional não deverá ser pressionar a economia, mas formar parcerias. É vital lembrar que a Cúpula da Terra, a Eco 92, foi sobre meio ambiente e desenvolvimento. O desenvolvimento sustentável (apresentado ao mundo naquele evento) é sobre a compatibilidade entre os dois termos, de modo a não reduzir as opções das gerações futuras. A Amazônia, o país e o mundo precisam da liderança brasileira.
* Thomas Lovejoy, biólogo americano, um dos ambientalistas mais renomados do mundo, responsável por cunhar o termo “biodiversidade”, viveu cinquenta anos na região da Floresta Amazônica
Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668